Evento organizado pelo INCT–ONSEAdapta e Grupo MultiTÃO trouxe falas de diferentes territórios para pensar as possíveis relações com corpos d’água ao nosso redor
O evento “Águas ancestrais: experimentos coletivos entre mundos e saberes” foi transmitido ao vivo pelo canal do Youtube da Revista ClimaCom. Participaram da programação Claudia Baré, liderança indígena, artesã e professora Baré, mestranda em Linguística na UNICAMP; Maíra Rodrigues da Silva, bióloga, doutoranda em Geociências (UNICAMP), quilombola de Ivaporunduva (SP); e Eduardo Mario Mendiondo, hidrólogo, professor da USP-São Carlos, articulador entre ciências das águas e saberes ancestrais.
A transmissão foi a primeira de um possível ciclo de seminários, organizados em parceria entre o Observatório Nacional de Segurança Hídrica e Gestão Adaptativa (ONSEADAdapta) e o grupo MultiTÃO, que reúne e pesquisa experimentações entre ciência e arte no cenário de mudanças climáticas. O encontro foi mediado por Marcela Paschoal Perpetuo, pós-doutoranda no Labjor, e teve como objetivo fazer um convite de habitar as águas como uma paisagem de múltiplas relações – e não apenas como um recurso.
Ancestralidade
As falas partiram de diferentes perspectivas e trajetórias de vida, passando por cosmovisões indígenas e quilombolas e projetos inter e multidisciplinares. Claudia Baré, moradora da região do médio Rio Negro, compara as diferentes funções que um rio pode ter dependendo do contexto regional e histórico em que está inserido. Ela lamenta os altos níveis de poluição dos rios do sudeste, como o Tietê e o Piracicaba, resultado de um processo intenso de colonização seguido da urbanização.
Baré apresenta imagens da convivência do seu povo com os rios e reforça que as águas também atuam como escolas para as crianças indígenas. Segundo a professora, a educação indígena acontece intrinsecamente conectada aos espaços culturais, artísticos e de vivência da comunidade, diferente dos modelos escolares tradicionais em culturas ocidentais.
Perpetuo reconhece na fala de Baré que a ideia de ancestralidade se apresenta como um laço do passado com projeções para o futuro, pensando também na experiência das próximas gerações.
“A outra geração também vai querer andar nesse riozão, comer as frutas, ver os animais. E não conhecer só os animais pela inteligência artificial ou pela internet. Não, as pessoas querem ver, querem pegar, querem sentir, querem nadar nos rios”, diz Baré. Ela reforça que para tornar isso possível, é necessário que as pessoas percebam a qual rio pertencem e tomem parte na vida desse corpo d’água.
Impactos
Já Maíra da Silva apresentou sua experiência com os rios do Vale do Ribeira, região localizada no sul do estado de São Paulo e no leste do estado do Paraná. Silva conta que parte do seu interesse por estudar os rios começou pela mobilização do quilombo contra um projeto de barragem no rio Ribeira. Na época, um engenheiro teria dito numa audiência que o povo quilombola não saberiam reconhecer a importância da barragem para o crescimento econômico da região por falta de conhecimentos.
Hoje, Silva pesquisa impactos da mineração e garimpo nas águas, passou por experimentos no rio Ribeira e agora estuda efeitos do rompimento da barragem de Brumadinho no rio Doce. Ela explica que na região do Ribeira há uma forte atividade de enriquecimento de metais, especialmente de chumbo. Essa extração libera rejeitos na bacia e resulta na degradação dos rios, impactando não só a qualidade das águas, mas outros seres vivos dependentes delas também.
A bióloga cita a interferência que alguns metais podem causar na germinação de sementes, impedindo a restauração de ambientes degradados, como no caso do rio Doce. E como essa degradação afeta não só o ambiente, mas a comunidade em torno. Silva exemplifica a importância de algumas espécies de plantas para a comunidade quilombola, as plantas de terreiro. Essas plantas fazem parte da cultura do povo e do cotidiano daquelas pessoas. Após o rompimento, elas deixaram de crescer e o vínculo da população com essas plantas corre risco de se perder.
Ao mesmo tempo que os povos tradicionais são conhecidos como guardiões das águas e do meio ambiente, são os mais afetados pela degradação desse ambiente. “Porque essa é a água que vai servir para irrigação, essa é água que vai servir para alimento”, reforça Silva. Além disso, ela explica que as águas são fonte de cultura e parte dos modos de vida de diversos povos, que sofrem com a perda de seus modos de vida.
Interdisciplinaridade
Para Eduardo Mediondo, o desafio do momento é pensar como será possível inovar e empreender a partir da ancestralidade. O hidrólogo, que atua junto a observatórios de sustentabilidade para a saúde planetária, diz que precisamos de hospitais planetários, mas que a criação desses espaços depende de ações locais e baseadas nos conhecimentos tradicionais.
“Essas combinações nos mostram que precisamos de uma ciência centrada nas pessoas. Não egocêntrica ou somente para as pessoas, mas que sirva para melhorar essa qualidade de vida. Portanto tem que ser uma ciência sensível, mas ela tem que ser integrada, não pode ser isolada”, reflete Mediondo.
Para ilustrar as possibilidades, o pesquisador cita um conjunto de laboratórios interdisciplinares de diferentes universidades e centros de pesquisas que estão envolvidos com a busca de soluções para mudanças climáticas. Entretanto, coloca que os desafios passam pela necessidade de co-criação de conhecimentos, unindo áreas, gerações e saberes distintos.
Mediondo, baseando-se nas projeções do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), elaborou junto com alunos diferentes cenários possíveis para o futuro do planeta. O cenário abismal seria aquele das piores projeções, com aumento de até 5°C na média da temperatura global. Em contrapartida, o cenário ancestral é aquele em que manteríamos a meta de emissões abaixo dos pressupostos do acordo de Paris, permitindo sonhar um futuro ancestral, aquele que já existia nas comunidades tradicionais.
Para Susana Dias, coordenadora do grupo Multitão e pesquisadora do Labjor, o encontro se apresenta como um chamado para ação, convocando a responsabilidade de cada pessoa em assumir o papel necessário na criação desse cenário ancestral.
Por Mayra Trinca