O último episódio da série “Mundaréu na Colômbia” encerra uma viagem que divulga pesquisas sobre ciência e tecnologia a partir de perspectivas feministas
O podcast Mundaréu, coordenado pela professora Daniela Manica, do Labjor, lançou nesta terça (29) o último episódio da série temática “Mundaréu na Colômbia”. A série é fruto do projeto de pesquisa “Um mundaréu de histórias: antropologia feminista da ciência e da tecnologia na América Latina”, financiado pela Fapesp. O projeto também publicou uma série anterior com pesquisadoras da Argentina e tem como objetivo conversar com pesquisadoras latino-americanas que trabalham na intersecção antropologia, feminismo, ciência e tecnologia.
A série conta com cinco episódios, publicados ao longo do mês de abril. Para a produção, Daniela Manica, Clarissa Reche e Irene do Planalto – alunas do Labjor e colaboradoras do Mundaréu – foram à Colômbia encontrar com a professora Tania Pérez-Bustos e outras pesquisadoras e antropólogas. Os episódios passam por discussões sobre gênero e raça na América Latina e como esses estudos se relacionam com o feminismo. O projeto usa técnicas de comunicação e divulgação científica para falar sobre as pesquisas, mas sem perder de vista um olhar de investigação que parte dos estudos de antropologia da ciência. Nesse caso, sendo a ciência a própria antropologia.
O segundo episódio discute como o feminismo pode atuar em outras esferas além dos estudos de gênero, como na política ou mesmo na ciência. Em conversa sobre a temporada, Fernanda Mariath, que faz parte da equipe Mundaréu, falou sobre como o feminismo costuma ter esse caráter propositivo, associado ao território. Segundo ela, o movimento busca “ser algo que é engajado e que proporciona mudanças, que é conectado com o que está acontecendo no dia a dia”.
Já no terceiro episódio, o tema são as sensorialidades como tecnologia e conhecimento adquirido. Nele, as apresentadoras discutem como práticas e saberes corporais – como a percepção de cheiros e sabores ou trabalhos manuais de artesanato, por exemplo — tendem a ser subvalorizados como objetos de conhecimento. Os trabalhos feminilizados, como práticas de artesanato, bordado ou mesmo de cuidados são comumente inferiorizados. Mas no episódio de encerramento, este cuidado é posto como um elemento que deveria ser almejado, incluindo – e especialmente – nas práticas científica e antropológica.
Feminismos latino-americanos: no plural mas conectados
Ao longo da temporada, escutamos diversas vezes as pesquisadoras falarem em feminismos. Questionada por que usar a palavra no plural, Manica disse considerar a palavra como “complicada”. “Eu acho que abrir ela deixa a gente mais leve. Abre mais espaço de manobra, ao mesmo tempo em que dá um certo parâmetro para a gente achar as pessoas que a gente quer”, se referindo às pesquisadoras sobre o tema.
A professora destaca que o feminismo não é um movimento único, inclusive porque passa por diversas intersecções. “Por exemplo, o anticapitalismo. Nem todas as perspectivas feministas são anticapitalistas necessariamente, mas estão tentando defender os direitos das mulheres em outras frentes, que também são válidas”, diz Manica.

Da esquerda para a direita, de cima para baixo estão Daniela Manica, Clarissa Reche e Irene do Planalto durante a viagem para a produção da temporada na Colômbia.
Já para Clarissa Reche, o fato de “pôr no plural possibilita a gente ser infiel ao feminismo. E criticar isso também, desde dentro”. Segundo ela, é um modo de pensar que permite questionamentos sobre os objetivos e resultados esperados do movimento. O episódio quatro da série discute como diferentes trajetórias de vida e contextos sociais moldam visões diferentes de feminismos. Os feminismos do norte global, pelo próprio contexto social e histórico, é muito diferente dos movimentos no sul global, e o episódio conta como houve, nas últimas décadas, uma virada antropológica que passa a dar mais atenção para pensadoras latino-americanas.
Para Irene do Planalto, o contexto da América Latina é parte importante da própria identificação do grupo Mundaréu e por isso fazia sentido a aproximação com pesquisadoras que compartilhem dessa experiência territorializada. Planalto destaca, por exemplo, experiências muito características relativas a questões raciais e ambientais, que aproximam os países latino-americanos.
Manica complementa reforçando que o projeto de pesquisa parte de duas questões muito relevantes para os estudos antropológicos sobre feminismo e ciência.
“Primeiro, o trabalho de valorização da pesquisa de mulheres que estão produzindo ciência na antropologia na América Latina. Segundo, feminismos latino-americanos têm uma diferença em relação aos outros, que é partilhar uma história de colonialidade, de exploração do território, de tensão racial e étnica com povos não brancos, os originários, os povos afrodescendentes que vieram para esse território também. Então, quando se está fazendo feminismos na América Latina, temos que lidar sempre com essas tensões. E não dá para fazer como fazem as europeias e as estadunidenses, que é lidar com isso de uma forma distanciada.”
Português-espanhol: o encontro também acontece nas línguas
Outro fator que une as experiências latino-americanas é a linguagem. Ainda que o Brasil possa ficar deslocado como o único país da região a utilizar o português como língua oficial, ele se aproxima o suficiente do espanhol para permitir compreender e se fazer entender. Partindo deste pressuposto, todos os episódios da série são bilíngues: a narração é feita pelas produtoras em português, mas as entrevistas com as antropólogas foram mantidas em seu idioma original.
Para Manica, manter as entrevistas no espanhol é também uma forma de valorizar a experiência da viagem. A mistura de idiomas reforça o caráter internacional do tema e do projeto de pesquisa, ilustrando com o uso do espanhol o trabalho conjunto entre países.
É também uma oportunidade de proporcionar um espaço de aprendizagem da língua, já que permite treinar a escuta. As produtoras disponibilizam o roteiro completo de todos os episódios no site e nas plataformas de áudio. Com isso, ouvintes podem acessar o texto para acompanhar o episódio, facilitando a compreensão e até utilizar ferramentas de tradução para termos que podem gerar maior estranhamento.
Outro ponto do uso do espanhol, que conversa com as discussões da série sobre o contexto latino-americano das pesquisas, é um movimento de decolonialidade. Apesar de o Brasil estar rodeado e muito próximo geograficamente de países falantes de espanhol, o inglês é um idioma mais frequente no dia a dia dos brasileiros. Manter o uso do espanhol e frisar a capacidade de compreensão da língua é uma forma valorizar o posicionamento latino-americano do projeto.