Pesquisador do Labjor discute em entrevista como as Inteligências Artificiais têm roubado a experiência dos usuários em prol de promessas mercadológicas
O uso de IA nas salas de aula, seja da educação básica ou das universidades, tem se tornado cada vez mais frequente. Entretanto, seu uso indiscriminado pode ter consequências negativas para a formação dos estudantes, o trabalho docente e a autonomia das instituições.
O tema foi abordado no texto “Entre a técnica e a política: inteligência artificial e ensino superior“, publicado na última edição da Revista Docência do Ensino Superior, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nele, Leonardo Cruz entrevista o pesquisador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), Rafael Evangelista.
Cruz é coordenador do Observatório Educação Vigiada e pesquisa plataformização da educação superior no Brasil, tópico que também foi tema do seu pós-doutorado realizado no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) entre 2016 e 2018. Já Evangelista, além de pesquisador no Labjor, é membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e cofundador da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits), pesquisando soberania digital, regulação das plataformas e apropriação tecnológica.
No texto, os pesquisadores iniciam o diálogo reforçando a importância de não subestimar a definição de inteligência utilizadas pelas IAs, que se baseiam em uma ideia proposta pela cibernética. Esse conceito define inteligência como a capacidade de, a partir de dois pontos conhecidos, presumir um terceiro, o que coloca os softwares que simulam conversas humanas, como os chatbots, como ferramentas de antecipação.
Ao extrair padrões de linguagem para produzir texto que mimetizam a escrita humana, a IA generativa se apropria das técnicas desenvolvidas pelos seres humanos. Evangelista compara esse processo com a perda da habilidade de se locomover na cidade sem utilizar GPS. Houve, na visão do pesquisador, uma terceirização da habilidade para os aplicativos de localização e o mesmo processo está em curso com as habilidades de escrita e raciocínio.
Promessas
A principal justificativa para o uso das IAs na escrita é a velocidade. Mas, segundo os pesquisadores, a produção acelerada não é um propósito, mas parte de um problema pré-existente, resultado de um ambiente de produção altamente competitivo. Uma das questões exemplificadas por eles é a precarização do ensino superior que, pela escassez e baixo valor das bolsas, obriga estudantes a conciliar pesquisa e trabalho. Assim, tarefas de leitura e escrita, que são essenciais para o desenvolvimento de habilidades de pesquisa, vão sendo perdidas e repassadas às IAs.
Outro aspecto que contextualiza o sucesso do uso das inteligências artificiais é a padronização do ensino superior. Parte desse problema está associada a terceirização e privatização, que passam a reger um modelo educacional visando o lucro a partir da replicação fácil e rápida de materiais, provocando uma padronização de todo o processo educacional e dos próprios alunos e, com isso, gerando um terreno fértil para o desenvolvimento e aplicação de inteligências artificiais na educação.
“O interessante seria desenvolver essa relação com a IA, a habilidade também de se relacionar com ela, junto com os alunos. Mas, como estamos numa sociedade que é altamente competitiva e os métodos também são muito competitivos e restritos, em termos de tempo, criamos esse jogo de gato e rato em que professores tentam não ser tapeados por alunos que estão numa relação pobre com a IA. Só que o aluno não está vendo que ele está perdendo a oportunidade de desenvolver uma habilidade, porque essa habilidade está sendo sequestrada pela própria máquina ao se colocar como capaz de escrever por você”, diz Evangelista.
A sequência desse ciclo vicioso cria ainda mais demanda por ferramentas mais eficientes, mais rápidas e capazes de mais funções. É a partir dessa expectativa que novas promessas são levantadas e aquecem o mercado, aumentando a captação de recursos – financeiros e humanos – para alcançar os novos objetivos postos. Para os pesquisadores, esse é um exemplo da lógica do capitalismo atual, em que o valor está mais na promessa do que na entrega.
Alternativas
Os pesquisadores concordam que não há solução simples, mas que é necessário encontrar um meio termo. Não se pode negar a existência e o uso da ferramenta, que substitui práticas de pesquisa, por exemplo, como os buscadores substituíram as buscas manuais nas bibliotecas. Mas também não é recomendável aceitar o uso indiscriminado e sem qualquer reflexão crítica dos impactos dessa tecnologia.
Evangelista chama atenção para a dependência de bases tecnológicas desenvolvidas pelas big techs e como isso gera um movimento de privatização do conhecimento produzido. “Acho essencial termos uma IA nacional, com base pública, em software livre e modelos abertos. E que seja feita em português”, reforça o pesquisador.
Segundo ele, parte dessa resposta passa por uma legislação robusta sobre o assunto, que esteja em constante revisão e que incentive a tecnodiversidade: estratégias mais plurais e alinhadas com diferentes contextos e visões de mundo.
Por Mayra Trinca