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Entre o popular e o erudito
Antonio Nóbrega defende a promoção de conversas entre as mais diversas vertentes de músicas, danças e teatros do mundo
Susana Dias
Entre. No meio. Nem um, nem outro. Parece ser nesse espaço híbrido que o dançarino, coreógrafo, músico e compositor Antonio Nóbrega deseja se situar. No meio, onde a contaminação e a criação tomam lugar da documentação e reprodução de qualquer manifestação artística. Nesta entrevista concedida à Revista Patrimônio, durante sua temporada no teatro do Sesc Ginástico, no bairro da Cinelândia no Rio de Janeiro, o artista fala de sua recusa à imagem de representante da cultura popular. Expressa seu pensamento sobre o papel da arte. Defende uma necessária “globalização” da cultura, com a promoção de conversas entre as mais diversas vertentes de músicas, danças e teatros do mundo. Conta sobre o seu fascínio pelo frevo, suas pesquisas e produções. Canta e encanta. Termina manifestando seu cansaço com a “vida de artista”.

Patrimônio - Quase um ano com o espetáculo Nove de Frevereiro em cartaz, dois CDs lançados e um DVD já anunciado. O que motivou toda essa produção?
Antonio Nóbrega
- Desde que conheci o frevo - e posso dizer que já faz bastante tempo, precisamente quando morava em Recife, na década de 70 - fui seduzido por esse “gênero”. Eu diria hoje que o frevo, mais do que um gênero, é uma espécie de instituição cultural, por conta até dessa atitude patrimonial que o frevo tem de abraçar uma linguagem de música instrumental, uma dança que nasceu junto com a música instrumental, e de se espalhar em duas vertentes: o frevo canção e o frevo de bloco.

Eu tomei conhecimento desse universo bastante jovem, aos 18 anos. Embora poderia ter sido ainda mais jovem, se os jovens em geral tivessem oportunidade de conhecer as manifestações artísticas de seu país, da sua cidade. Embora fosse um aluno de música, da Escola de Belas Artes, eu não conhecia o frevo, não conhecia a música da minha região. Até ser convidado por Ariano Suassuna para integrar o Quinteto Armorial.

Somos educados, por um lado, a tocar nos conservatórios e a estudar música dos grandes compositores. Todo nosso adestramento técnico era para tocar Mozart, Beethoven, Bach. O que é muito bom, mas não é o suficiente. Por outro, somos cotidianamente bombardeados pelas músicas que as rádios e televisões dominadas pela indústria cultural nos jogam. No meio disso fica um desconhecimento muito grande de outras realidades musicais, sobretudo a realidade musical brasileira e outras vertentes.

A partir de meu encontro com Suassuna fui convidado a tomar conhecimento de várias formas musicais, de dança e teatro que me eram completamente desconhecidas. O frevo foi uma dessas que me tocou muito, primeiro pelo dança, pelo fascínio que tive ao ver os passistas de frevo dançarem. Particularmente um deles, Nascimento do Passo, hoje um homem sexagenário. Ao longo do meu trabalho no Quinteto Armorial e depois dos meus espetáculos, o frevo foi se fazendo presente. Já no segundo ou terceiro disco do Quinteto nós tocávamos frevos instrumentais, popularmente chamados de frevo de rua. Quando me desliguei do grupo passei a criar meus espetáculos autorais, alguns solos, e o frevo foi incorporado de maneira mais constante. Em todos os meus espetáculos o frevo sempre esteve presente, também através da minha dança (nós chamamos o frevo dançado de um passo do frevo). Comecei a cantar também frevos autorais, frevos de compositores expressivos e os frevos instrumentais.

Há 5 ou 6 anos atrás comecei a nutrir a idéia de dedicar um espetáculo integralmente ao frevo, que me fascinava. Em 2005, me apercebi que o frevo completaria, em 2007, 100 anos. Vi que seria uma data interessante, normalmente essas datas ajudam a mídia a assimilar as manifestações culturais, principalmente pensando que o frevo, depois do baião e do samba, talvez seja o “gênero” mais nacionalmente conhecido.

Patrimônio - Você falou de uma multiplicidade de formas como o frevo acontece. Quais as diferenças entre esses frevos (de rua, de bloco e canção)?
Nóbrega
-O frevo de rua, ou instrumental, é puramente tocado, tradicionalmente, pela orquestra de metais e percussão. Já a orquestra moderna de frevos é constituída basicamente de quatro ou cinco saxofones, quatro trompetes, três ou quatro trombones, caixa, surdo, pandeiro, guitarra - para dar harmonia - e um baixo. Normalmente as orquestras que se apresentam em palcos têm essa formação, mas a formação mais antiga era a da banda das corporações militares, onde avultavam, sobretudo, os trombones e trompetes. O saxofone é uma assimilação posterior, porque o trombone e o trompete fazem muito barulho e o saxofone faz menos. A banda saía tocando polcas, maxixes, marchas dobradas, e é dessa formação que nasce a orquestra do frevo, bem como o próprio frevo enquanto “gênero” musical: o frevo instrumental. Uma grande legião de compositores vem se dedicando a ele ao longo de mais de 100 anos. A data é simbólica, se considera que o frevo nasceu em 1907 porque no dia 9 de fevereiro a palavra frevo apareceu pela primeira vez em um jornal de Recife, o Jornal Pequeno. Antes a palavra já existia na boca do povo, mas não com o sentido moderno.

Voltando. Às vezes um compositor escreve uma música com as mesmas características do frevo de rua, o instrumental, mas com uma letra: esse é o frevo canção. Dentro desse gênero pontuam compositores como Capiba, Nelson Ferreira, Manoel Gilberto, Getúlio Cavalcanti. O frevo instrumental, ou de rua, nasceu concomitante ao passo do frevo. Nasceram numa simbiose completa. É uma dança com vocabulário maravilhoso de passos. Os CDs que produzi têm, em seus encartes, esse vocabulário. Num deles, estão mais de 100 passos, muito curiosos: ferrolho, tesoura, massapê, metrô de superfície, coice de mula, britadeira, britadeira voadora, vôo do morcego etc.

Essas três formas são da mesma irmandade dentro de uma vertente. O quarto irmão dessa tríade é o frevo de bloco que, embora não tenha nascido de uma mesma semente, tem características muito parecidas com os três. O frevo de bloco tem um andamento muito mais lento do que o frevo de rua e o frevo canção. Tem uma orquestra um pouco mais maneira, chamada de orquestra de pau e corda, que é composta de instrumentos como bandolim, cavaquinho, violão, violino, contra-baixo e de instrumentos de sopro leve como a flauta e o clarinete. Por que é chamado de frevo? Porque é uma música que se mexe dentro do mesmo binário do frevo: Tum tum, Tum tum, Tum tum. “Felinto, Pedro Salgado/ Guilherme, Fenelon...”. Já o frevo canção, embora seja o mesmo binário, é uma música mais nervosa, mais agitada, mais ligeira. TUMtum, TUMtum, TUMtum. “Eu fui à praia do Janga/ pra ver a ciranda...”. Além do binário, esses gêneros vieram também a ter no carnaval a sua praça de manifestação.

Uma outra característica do frevo canção e do frevo de bloco é que antes da canção propriamente dita, do texto, tem uma introdução instrumental. Uma aberturazinha que dá uma graça muito especial. O frevo canção geralmente é cantado por um solista, um homem e uma mulher, com a presença de coro, por vezes com um coro de vozes femininas nos refrões. Enquanto que as marchas de bloco tradicionalmente eram cantadas por pastoras, ainda hoje isso acontece em Recife. Quinze, vinte, por vezes, cinqüenta delas cantando e a orquestra de pau e corda, formada por uma cinqüentena de instrumentos saem em bloco. Há 20, 30, 40 anos atrás esses blocos tinham uma organização familiar: as meninas, moças e senhoras que iam à frente eram acompanhadas dos pais, namorados, avós, amigos, irmãos que estavam na orquestra. Hoje, os blocos também são cantados por vozes solistas, ora feminino, ora masculino.

Patrimônio - E o espetáculo?
Nóbrega
- Pus-me a dar corpo à idéia e isso me colocou vários bons desafios. Um deles foi desenvolver melhor o instrumento violino, já que queria tocar frevo com violino. Como o frevo se manifesta também através de uma vertente instrumental, e não sendo eu saxofonista ou trompetista – instrumentistas que habitualmente tocam nas orquestras de frevo – percebi que só poderia usar o instrumento que me acompanhava: o violino. Precisei estudar mais, a técnica que eu tinha era insuficiente para tocar frevos com violino. Por não ser uma música concebida para esse instrumento, tinha que fazer transcrições para ele, colocar a técnica violinística em função das articulações, do temperamento dessa música. Ao abraçar o frevo eu o abraçava como instrumentista, como cantor de frevos canções e de blocos - compondo inclusive - e como dançarino.

É esse universo que me fascina, que eu chamo de instituição. Porque ele reúne aqueles segmentos que me são familiares ao longo do meu trajeto artístico. Nos espetáculos, tenho sempre me expressado por essas linguagens. Com exceção da linguagem teatral, que não está oficialmente declarada no frevo. Mas assim mesmo, a parte vocabular do frevo, busquei uma pequena dramaturgia através das peças cantadas, que nos levaram a algumas pantomimas, alguma coisa que poderíamos chamar de teatro gestual.

Eu não pensei absolutamente em fazer um espetáculo documental, mas repare que se uma pessoa assisti-lo vai de certa forma ter uma visão do frevo – claro que não uma noção disso que estamos falando aqui. Eu acho tudo isso menos importante. Para mim o mais importante é que as pessoas saiam daqui alimentadas. Que o espírito delas se alimente de alguma coisa, que eu acho que é o papel da arte.

Patrimônio - Por várias vezes você comentou sobre sua opção, nos espetáculos, em criar e não em documentar. Essa sua postura tem recebido algumas críticas relacionadas à possível distorção da origem e da essência das canções e danças populares. Como você avalia essas críticas? O que você pensa sobre a sua aposta e a possibilidade de aumentar a permanência dessas manifestações artísticas populares?
Nóbrega -
Eu não me coloco na perspectiva de aumentar a permanência das formas populares. Já li até matéria em que me consideravam o maior artista popular do Brasil. É um equívoco, primeiro pelo “maior” e depois porque eu não me acho um “artista popular”, no stricto senso. Não venho da mesma camada popular, não tenho a mesma vivência. Sou filho da classe média, estudei violino erudito clássico, minha formação é outra.

O que tenho com a cultura popular é uma ligação referencial, como todo artista tem suas referências. Poderia na minha vida, por exemplo, ter referências da música ocidental e ser um compositor de música na linhagem do ocidente, como outros no Brasil. É um patrimônio do qual temos músicos, que fazem músicas na orquestra de câmara. Poderia também ser um músico adequado à linhagem da música popular brasileira, da MPB, das várias vertentes.

Mas, para o bem ou para o mal, não sou eu que posso avaliar isso. Tomei de amores a cultura do povo brasileiro. Debrucei-me sobre ela, a princípio sem pensar, para sem fiel à colocação “a gente não pensa quando ama”. Apaixonei-me pelos vários dialetos das nações indígenas, nações africanas e grupos étnicos ibéricos que aqui se encontraram e por essa maravilha que fizeram, por esse tecido maravilhoso, que são as danças, os cantos, as manifestações artísticas que o povo brasileiro criou. Um novo mundo, que me serve de patamar para que eu me exercite no meu universo criador. Sou movido por princípios de formação e de visão estética que me parecem ser os pertinentes para o meu trabalho. Se eles vão ficar... não me compete dizer. Se eu os distorço... dentro da minha visão eu não distorço, mas esta é uma visão minha, porque se eu fizesse de forma distorcida tentaria corrigir. O que posso dizer é que se eu distorço, terão distorcido também Guimarães Rosa, quando viajava com os boiadeiros do sertão mineiro e se apropriava e recriava a maneira deles falarem. Distorceu também Villa-Lobos, quando usou todo um universo de canções para criar suas obras.

Não tenho a grandeza nem de Guimarães Rosa nem de Villa-Lobos. Sou um dançador, instrumentista, cantor, compositor e coreógrafo. No meu trabalho no campo da dança, como artista de palco, sou uma espécie de artista de transição (isso até onde eu posso me ver). Claro que existem várias maneiras de se apropriar – se é que a palavra é essa – ou assimilar essas referências populares. O pessoal que faz a chamada música Mangue faz de uma maneira. Eu faço de outra. Há quem faça de uma terceira. O juiz disso tudo é o tempo e a adesão que você tem das pessoas.

Apesar da cultura popular estar sendo, hoje, inserida num contexto maior de compreensão e valorização, ela ainda não é compreendida em sua ampla dimensão. Às vezes eu tento me afastar da cultura popular, para não haver essa impregnação excessiva da minha figura como um cantor, um artista, uma bandeira da cultura popular. Ela é referência e eu não quero, com isso, diminuí-la ou ter receio de que o rescaldo da sua má compreensão termine me manchando. É que realmente às vezes há um mau entendimento. Por exemplo, a música de Paulinho da Viola. Precisa falar que a música popular é a base do seu trabalho? Mas a música dele é referenciada em um gênero da cultura popular, o samba, antes de se transformar em um gênero que é popular. Não é uma música da cultura popular porque não é coletivizada. É uma música autoral, assim como o frevo é uma música autoral. Outra palavra que eu não uso, e que acho que empobrece muito a compreensão da cultura popular, é a palavra folclore, que vem sendo cada vez mais apequenada no seu sentido. Também porque essa palavra nasceu de uma conceituação européia. O termo folclore foi dado àquela cultura que na Europa, no final do Romantismo, se dava um tipo de manifestação que não tinha uma dinâmica na sociedade. Como os contos de Andersen, por exemplo, que recriou aqueles universos. Ele recriou os contos populares assim como vários de nós recriamos também algumas dessas histórias populares. Mas, no Brasil, a cultura é viva, atuante, dinâmica, ela tem um papel muito rico, que nós não estamos sabendo compreender. O meu interesse não é folclorizar a cultura popular, mas ver onde existem elementos que são imprescindíveis para que a arte possa rejuvenescer.

Patrimônio - Como você avalia as iniciativas de registro do samba-de-roda, jongo e, agora, o processo do frevo, em andamento, como patrimônio cultural imaterial brasileiro? Elas têm o potencial de auxiliar a produzir esse encantamento, essa “globalização” a que você se refere?
Nóbrega
- São gestos muito importantes. É um jeito do Brasil de reconhecer, dentro de si, valores que até então não eram dimensionados à sua altura. Acho que isso também deve acarretar, materialmente, formas de fazer com que esses gêneros, produções, formas, manifestações, comecem a ter um papel mais ativo na sociedade, na dinâmica social. Não sei se o choro é, por exemplo. Se não é, deve ser. Esses gestos podem ser elementos propulsionadores de uma maior assimilação na sociedade. Veja a capoeira, por exemplo. Ela tem características formidáveis de uma cultura corporal que pode ser revisitada de várias maneiras, não só pelo atributo da luta, que acho menos importante. O frevo é um braço da capoeira. A capoeira é uma cristalização, assim como o frevo é outra. Elas carregam dentro de si uma série de coisas que, se forem bem estudadas, vamos nos espantar com as riquezas.

Patrimônio - Existe hoje uma conversa atualmente em torno da propriedade intelectual na música e sua democratização. Têm surgido diversas formas de disponibilizar as músicas on-line, algumas que permitem o partilhamento das músicas com outras pessoas, outras que permitem apenas acesso on-line. Como você vê esse movimento?
Nóbrega -
Confesso que não cheguei lá ainda não (risos). Na internet eu estou em fase de começar a mandar e-mail. Nas férias agora vou até procurar entender mais. Em princípio minha atitude é sempre assim, procuro me colocar da maneira mais parcimoniosa e mais democrática no sentido da utilização dos bens de consumo. Mas eu também coloco nesse meio uma questão que é a seguinte: eu tenho meu selo e não é porque eu quis, mas agora me acostumei e agora eu quero. Quando eu lancei meu primeiro CD nenhuma gravadora se interessava pelo meu trabalho. O segundo também. As rádios não tocam, raramente. Muitos dos meus CDs vendo em shows.

Tenho uma ligação ainda patrimonial com o que eu faço, muito dependente. Porque produzo para depois tocar minha vida. Na medida em que eu tenha um certo conforto material para dizimar os custos disso eu não me importaria. Se eu tivesse um salário, talvez. É claro que eu não posso reclamar, tenho uma vida privilegiada. Morar onde moro em São Paulo. Fazer o que eu quero. Só o fato de morar em São Paulo e não ter que conviver com aqueles que são os males da cidade – como o trânsito horrível, por exemplo – já é um privilégio. Moro numa área arborizada, de casas, a 10 minutos do Instituto Brincante, onde trabalho, e não preciso fazer outra coisa a não ser tocar, dançar e cantar para viver. No entanto, eu tenho que ralar muito e, curiosamente, onde eu gostaria de ralar mais era no meu projeto artístico. Eu posso ser um dançarino, um cantor e um compositor melhor do que eu sou. Não sou porque tenho que gastar meu tempo buscando patrocínios, embora tenha uma equipe de produção boa tenho que arregaçar as mangas. Não tem aquele conforto de enviar um trabalho para uma empresa e ter a certeza do patrocínio, apesar de um extenso serviço já prestado. Isso faz com que eu tenha uma prática que poderia ser outra. Se eu tivesse um salário para me apresentar quantas vezes fosse necessário no país, por exemplo. Eu não pensaria em cachê, nem me preocuparia com o que fizessem com minha música. Democratizem tudo o que puderem, se me derem um salário para tocar minhas coisas, não quero mais que isso, não tenho ambições financeiras muito grandes. Mas como não é o caso, sem estar me lamentando, mas o fato é que eu não posso me dar ao luxo de tornar meu trabalho livre de qualquer ressarcimento, porque é isso que move a existência do meu trabalho.

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