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Os poetas e os museus
Três autores brasileiros e uma polonesa escrevem sete poemas sobre museus
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Wisława Szymborska. Foto: Michał Kobyliński (Creative Commons Attribution ShareAlike 2.5) |
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V.
Museu da Inconfidência
Carlos
Drummond de Andrade
São
palavras no chão
E
memórias nos autos.
As
casas inda restam,
Os
amores, mais não
E
restam poucas roupas,
Sobrepeliz
de pároco
E
vara de um juiz,
Anjos,
púrpuras, ecos
Macia
flor de olvido,
Sem
aroma governas
O
tempo ingovernável.
Muitos
pranteiam. Só.
Toda
a história é remorso.
Museu
Cecília
Meireles
Espadas
frias, nítidas espadas,
Duras
viseiras já sem perspectiva,
Cetro
sem mãos, coroa já não viva de
cabeças em sangue naufragadas;
Anéis
de demorada narrativa,
Leques
sem fala, trompas sem caçadas,
Pêndulos
de horas não mais escutadas,
Espelhos
de memória fugitiva;
Ouro
e prata, turquesa e granadas,
Que
é da presença passageira e esquiva
Das
heranças dos poetas; malogradas:
A
estrela, o passarinho, a sensitiva,
A
água que nunca volta, as bem amadas
A
saudade de Deus, vaga e inativa...?
O
ramo de flores no museu
Cecília
Meireles
Ó
Cinérea Princesa, as vossas flores
Ficarão
para sempre mais perfeitas,
Já
que o tempo extinguiu brilho e cores
Já
que o tempo extinguiu a habilidosa
Mão
que levou, serenas e discretas,
A
tulipa sucinta e ardente rosa.
Não
há mais ilusão de outra presença
Que
a do Amor que inspirou graças tão finas
Que
ninguém viu e que ninguém mais pensa
Porque
o homem e o mundo são de ruínas.
E
este ramo de pétalas franzinas,
Leve,
liberto da mortal sentença,
Tinha,
ó Princesa, fábulas divinas
Em
cada flor, sobre o nada suspensa.
Museu
Wislawa
Szymborska
Há
pratos, mas falta apetite.
Há
alianças, mas falta reciprocidade
Pelo
menos desde há 300 anos.
Há
o leque – onde os rubores?
Há
espadas – onde há ira
E o
alaúde nem tange hora gris.
Por
falta de eternidade juntaram
Dez
mil coisas velhas.
Um
guarda musgoso cochila docemente
Com
os bigodes caindo sobre a vitrine.
Metais,
barro, pluma de ave
Triunfam
silenciosamente no tempo.
Apenas
um alfinete de galhofeira do Egito
Ri
zombeteiro.
A
coroa deixou passar a cabeça.
A
mão perdeu a luva.
A
bota direita prevaleceu sobre a perna.
Quanto
a mim, vivo, acreditem por favor.
Minha
corrida com o vestido continua
E
que resistência tem ele!
E
como ele gostaria de sobreviver
Museu
de tudo
João
Cabral de Melo Neto
Este
museu de tudo é museu
Como
qualquer outro reunido;
Como
museu, tanto pode ser
Caixão
de lixo ou arquivo.
Assim,
não chega ao vertebrado
Que
deve entranhar qualquer livro:
É
depósito do que aí está,
Se
fez sem risca ou risco.
O
mito em carne viva
João
Cabral de Melo Neto
Em
certo lugar de Castela,
Num
dos mil museus que ela é,
Ouvi
uma sevilhana,
A
quem pouco dizia a Fé,
Ante
uma crucificação
Comovida
dizer
A
emoção mais nua e crua
Corpo
a corpo, imediata, ao pé,
Sem
compunção fingida,
Sem
perceber se quer
A
névoa que a pintura
Põe
entre o que é e o que é:
Lo
que é no habrá sufr’io e´ta
mujé!
Era
a expressão em carne viva,
E
porque viva mais ativa:
Nua,
sem os rituais ou as cortinas
Que
a linguagem traz por mais fina.
A
crucificação para ela
Não
era o que o pintor num tempo:
Para
ela como um cinema
Narrando
um acontecimento
Era
como a televisão
Dando-o
a viver no momento.
No
museu da memória
João
Cabral de Melo Neto
No
museu da memória guardo de Munique
Os
carrilhões da praça, a festa da cerveja.
Guardo
a galeria de retrato das amantes
De
Frederico, o Grande, e as telas do monge
Zurbarán.
No museu da memória reservei
Um
espaço para a pequena Gräfelfing. Mas,
No
centro desse nada que são as lembranças,
Guardo
os doces olhos de Radha, mais que os
Castelos
da Baviera, mais que Boris Gudonov.
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