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Revista do Patrimônio: Museus
Publicação do Iphan promove diálogo sobre o "poder devorador dos museus"
Mário Chagas
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Só a antropofagia nos une: o poder devorador dos museus
Todo e
qualquer museu coloca em exercício um
determinado poder devorador. Não há monumento, não
há documento, não há patrimônio cultural
ou natural, não há cotidiano ou festa que resista ao
seu canto, ao seu encanto e à sua capacidade de
produção
simbólica e de transformação dos sentidos.
Conclusão:
nesse mundo de meu deus tudo é
museável; tudo pode, pelo menos em tese, ser incluído
no campo de possibilidades do museu. Essa capacidade inclusiva tem
relação direta com o seu poder de produzir metamorfoses
de significados e funções, com a sua aptidão
para a adaptação aos condicionamentos históricos
e sociais e a sua vocação para a mediação
cultural. Por esta vereda, pode-se considerar o museu como ponte
entre tempos, espaços, indivíduos, grupos sociais e
culturas diferentes; ponte que se constrói com imagens e que
tem no imaginário um lugar de destaque. Não é
sem sentido que André Malraux faz coincidir o mundo da arte
com o denominado Museu Imaginário. "Afinal - diz ele - o
museu é um dos locais que nos proporcionam a mais elevada
idéia do homem" (2000, p.12).
No entanto, diante de um ente devorador como o museu,
tantas vezes chamado de dinossauro ou esfinge, não se pode ter
ingenuidade. É prudente manter por perto a lâmina da
crítica e da desconfiança. Ele é ferramenta e
artefato, pode servir para a generosidade e para a liberdade, mas
também pode servir para tiranizar a vida, a história, a
cultura. Para entrar no reino narrativo dos museus é preciso
confiar desconfiando.
Só a museologia nos une. Tudo pode ser
antropofagizado e ressignificado pelo museu. Se a museologia - como
projeto de construção de uma “identidade
cambiante” (Borges 2002, p.69) - nos une; enquanto anelo de
registro e fixação da alteridade - ela também
nos separa. Não é demais lembrar que os mitos
fundadores da antropologia – e suas diferentes formas de olhar
para o estranho e para o familiar - nos remetem aos museus.
A configuração do museu moderno remonta ao
século XVIII e, particularmente, ao movimento iluminista.
Desde então, eles constituem um campo privilegiado tanto para
o exercício de uma imaginação criadora que leva
em conta o poder das imagens, quanto para a dramaturgia do passado
artístico, filosófico, religioso, científico -
em uma palavra: cultural. É na moldura da modernidade que o
museu se enquadra como palco, tecnologia e nave do tempo e da
memória. Como palco, ele é espaço de
teatralização e narração de dramas,
romances, comédias e tragédias coletivas e individuais;
como tecnologia ele se constitui em dispositivo e ferramenta de
intervenção social; como nave ele promove deslocamentos
imaginários e memoráveis no rio da memória e do
tempo. Tudo isso implica a produção de novos sentidos e
conhecimentos, a partir de sentidos, sentimentos e conhecimentos
anteriores. A antropofagia nos une. A museologia também é
antropofágica, por isso andou e anda interessada em despojos,
fragmentos, traços, partículas, restos de culturas
mortas e sopros, forças, ventos e hálitos de culturas
vivas, sabendo que esses restos e hálitos são
explosivos, são bombas e servem para narrar histórias e
acordar agoras.
A cirurgia conceitual operada pelo museu moderno foi tão
radical que, depois de sua realização, tudo passaria a
poder ser visto a partir da própria moldura do museu.
Palácios
e palafitas, casas-grandes e senzalas, castelos e bangalôs,
fábricas e escolas, escolas de samba e cemitérios,
florestas e portos, terreiros de candomblé e centros
espíritas, lojas maçônicas e igrejas
católicas,
pessoas, animais, plantas e pedras, pedaços da lua e
fragmentos da alma, paisagens urbanas e rurais, campo e cidade, tudo,
enfim, passou a poder ser compreendido como parte de uma museologia
aplicada ou de uma museografia especial.
Donald Preziosi, em texto publicado no catálogo
da XXIV Bienal de São Paulo, identifica o poder canibal do
museu e procura estratégias para "evitar ser comido".
Ainda assim, segundo Preziosi (1998, p.50): "Não podemos
escapar aos museus, já que o próprio mundo de nossa
modernidade é, nos aspectos mais profundos, um supremo
"artefato" museológico".
Mais adiante, o citado autor argumenta: "Evitar ser
comido por um museu é reconhecidamente um problema universal,
dado que vivemos num mundo em que virtualmente qualquer coisa pode
ser encenada ou exposta em um museu e em que virtualmente qualquer
coisa pode servir ou ser classificada como museu". (Preziosi,
1998, p.50).
Ainda que eu concorde com o diagnóstico de
Preziosi, não concordo com o seu andamento e menos ainda com a
sua sugestão de se evitar a antropofagia museal. Na
perspectiva dos timbiras, por exemplo, para não ser comido
basta se acovardar diante do risco da morte, basta não ter
dignidade para morrer. Possivelmente, esta não é a
proposta de Preziosi. Mas, ainda assim, eu gostaria de sentenciar:
apenas aquele que está corajosamente pronto para ser devorado,
está também em condições de saborear o
banquete.
Reconhecer o poder antropofágico do museu, a sua
agressividade e o seu gesto de violência em relação
ao passado é, ao que me parece, um passo importante; mas,
talvez o maior desafio seja reconhecer que essas
instituições
criam e acolhem o humano, e, por isso mesmo, podem ser devoradas.
Devorar e ressignificar os museus, eis um desafio para as novas
gerações.
Na atualidade, a afirmação de que os
museus constituem lugares de memória passou a ser um lugar
comum. Se nos anos 80 e 90 as investigações de Pierre
Nora sobre os lugares de memória eram capazes de produzir
impactos criativos, hoje seus impactos tendem a ser absorvidos,
neutralizados e naturalizados.
Passou
a ser praxe de elogio institucional a afirmação
de que o museu “x” ou “y” é um lugar
(ou casa) de memória; como se a memória tivesse valor
em si mesma e fosse a expressão da verdade pura e do supremo
bem; como se o esquecimento fosse o mal ou um vírus criminoso
que devesse ser combatido, deletado, destruído. De qualquer
modo, compreendidos como casas de memória, os museus entraram
no século XXI em franco movimento de expansão e
continuam exercendo, em nome de sujeitos mais ou menos ocultos, o seu
poder que tanto serve para libertar, quanto para tiranizar o passado
e a história, a arte e a ciência.
Talvez fosse adequado, para melhor compreendê-los
numa perspectiva crítica, aceitar a obviedade: os museus
são
lugares de memória e de esquecimento, assim como são
lugares de poder, de combate, de conflito, de litígio, de
silêncio e de resistência; em certos casos, podem
até
mesmo ser não-lugares. Toda a tentativa de reduzir os museus a
um único aspecto, corre o risco de não dar conta da
complexidade do panorama museal no mundo contemporâneo.
Ao considerar o movimento de proliferação
e ressiginificação dos museus no Brasil nos
últimos
trinta anos, dois aspectos, segundo penso, ganham destaque: a
diversidade museal e a democratização da tecnologia
museu.
O fenômeno
da
ampliação da diversidade museal trouxe a erosão
das tipologias museológicas baseadas em disciplinas e acervos,
o alargamento do espectro de vozes institucionais, a
flexibilização
das narrativas museográficas de grandes sínteses
nacionais ou regionais, a experimentação de novos
modelos museológicos e museográficos, a
disseminação
de museus e casas de memória por todo o país. A
democratização da tecnologia museu implicou a
apropriação (ou a antropofagia) dessa ferramenta por
diferentes grupos étnicos, sociais, religiosos e familiares
com o objetivo de constituir e institucionalizar as suas
próprias
memórias. Alguns exemplos: Koahi - Museu dos Povos
Indígenas
do Oiapoque (Oiapoque, AP), Museu Casa de Chico Mendes (Xapuri, AC),
Rede Memória – Museu da Favela da Maré (Rio de
Janeiro, RJ), Casa de Memória Daniel Pereira de Mattos do
Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus
Fonte de Luz (Rio Branco, AC), Museu Indígena de Coroa
Vermelha (Santa Cruz de Cabrália, BA), Museu Magüta dos
índios Ticuna (Benjamim Constant, AM), Museu do Templo da
Sociedade Brasileira de Eubiose (São Lourenço, MG).
Os exemplos de apropriação cultural
poderiam ser dobrados ou triplicados. Creio, no entanto, que os acima
indicados são suficientes para corroborar a
afirmação
de que é um desafio pertinente (e impertinente) a idéia
de pensar os museus como antros antropofágicos (ou mesmo
canibais) e entes que podem ser antropofagizados.
O
que até aqui foi apresentado de maneira breve está
desenvolvido no número 31 da Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, dedicado ao tema
“Museus: antropofagia da memória e do
patrimônio”
e que tive a honra de organizar ao lado da editora Ana Carmen Amorim
Jara Casco. A referida revista foi concebida, planejada e
desenvolvida como um banquete, para o qual foram convidados autores
vivos e mortos, antigos e contemporâneos, brasileiros e
estrangeiros, de dentro e de fora do Iphan. Um banquete e um
diálogo;
uma mistura de experiências, pesquisas, práticas e
reflexões. É isso o que essa revista é, pelo
menos em parte.
De
algum modo, os museus nos desesperam e ainda assim guardam os
tesouros da nossa humanidade, tesouros que nos aguardam e que para
ser encontrados e desfrutados exigem coragem de ser, coragem de lidar
com eles de modo sensível e criativo. É preciso que nos
aproximemos deles sem ingenuidade, mas também sem a
arrogância
do tudo saber. É preciso que nos apropriemos deles. Um dos
nossos desafios é aceitá-los como campos de
tensão.
Tensão entre a mudança e a permanência, entre a
mobilidade e a imobilidade, entre o fixo e o volátil, entre a
diferença e a identidade, entre o passado e o futuro, entre a
memória e o esquecimento, entre o poder e a resistência.
Suponho que se engana quem pensa que existe uma única
possibilidade de memória e que essa possibilidade única
implicaria a repetição do passado e do já
produzido; suponho que se engana quem pensa que há humanidade
possível fora da tensão entre o esquecimento e a
memória. É essa tensão, ao contrário do
que poderia parecer, que garante a eclosão do novo e da
criação. O futuro também nos olha e pisca
lá
de dentro do passado (se é que o passado tem um dentro). O
esquecimento total é estéril, a memória total
é
estéril.
Introdução ao tema: a possibilidade de
criação humana mora na aceitação da
tensão entre recordar e esquecer, entre o mesmo e a
negação
da mesmice.
Referências
bibliográficas
BENJAMIN,
Walter. Obras escolhidas I, II e III. São Paulo:
Brasiliense, 1985, 1995 e 1994.
BORGES,
Jorge Luis. Cinco visões pessoais. Brasília:
Unb, 2002, p. 68-69.
MALRAUX,
André. Museu Imaginário. Lisboa:
Edições
70, 2000.
NORA,
Pierre. Memoire et Histoire: le problematique des lieux. Les
Lieux des memoire. V.1., La Republique. Paris: Gallimard, 1984.
PREZIOSI,
D. Evitando museocanibalismo. In: HERKENHOFF, P. e PEDROSA,
Adriano. XXIV Bienal de São Paulo: núcleo
histórico:
antropofagia e histórias de canibalismo. V,1, p.50-56,
São
Paulo: A Fundação, 1998.
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