MARCO TEÓRICO
Cultura
é o caldo
abrangente que envolve as relações humanas no
espaço
e no tempo. É a história e o futuro,
reconstrói-se
em todos os espaços e tempos. É a
evolução
humana inexorável, vá para onde for, como um
cometa que
em sua trajetória perde e agrega matéria e
energia. Nesses termos significa a própria
civilização
humana em perspectivas histórica e espacial.[1]
Mais comum
é reconhecermos como patrimônio
cultural aquilo que é designado por modos
específicos,
como o patrimônio de um determinado museu. Reconhecemos como
patrimônio a coisa própria de alguém,
seja
indivíduo ou coletividade. Já quando designado cultural
refere-se à cultura de um grupo ou uma sociedade
determinada,
minimamente identificado e qualificado. Ana Claudia Aguiar gravou um
raciocínio interessante: Entender
o conceito de patrimônio
histórico e artístico para patrimônio
cultural
significa compreender que o valor de um bem transcende em muito seu
valor histórico comprovado ou reconhecido oficialmente, ou
as
suas possíveis qualidades artísticas.
É
compreender que este bem é parte de um conjunto maior de
bens
e valores que envolvem processos múltiplos e diferenciados
de
apropriação, recriação e
representação
construídos e reconhecidos culturalmente e, aí
sim,
histórica e cotidianamente, portanto anterior à
própria
concepção e produção
daquele bem.
Assim
como seus componentes conceituais – signo, símbolo
e
simbólico, valor, etc., a cultura, conquanto abrangente e
sem
limites ou contornos naturais, é identificada a partir do
arbítrio de limites, interessando neste artigo os limites
físicos que definem as cidades, regiões ou
nações.
Uma vez identificado o universo de cultura com o qual se pretende
trabalhar, desde logo será necessário analisar
referências internas e externas, ou uma
contextualização
integral do objeto, para passar à objetividade dos casos ou
projetos em desenvolvimento. Assim, por exemplo, valida-se a
demonstração de que um determinado processo de
urbanização é, sobretudo, resultante
de
complexos sistemas de interação que, vistos em
seu
conjunto, constituem elementos constantes e nodais ao caldo de
cultura de uma determinada sociedade.
Dessa forma
e neste artigo
focamos o patrimônio ferroviário enquanto um dos
fenômenos históricos fundadores da modernidade
industrial no Brasil, portanto merecedor de maior
participação
no universo dos bens culturais a preservar.
A
história narrada é, quando muito, uma
versão esquelética da História,
composta por
múltiplos pontos (lugares, datas, nomes, signos, etc) mais
ou
menos brilhantes, e fios imaginários que os unem. Gosto de
pensar que, não sendo historiador, posso dar-me o prazer de
acrescentar carnações e cores a essa estrutura.
Mas,
assestando luzes sobre
as cidades brasileiras no segundo período da
Revolução
Industrial, mais precisamente entre os anos 1875 e 1925, vemos quanto
a própria história lhes lançou sombras
de
menosprezo e acumulou espesso pó de ignorância, em
que
pesem os esforços de muitos estudiosos[2]. Sinto-me
compelido
a compor o grupo que vem resgatando esse período crucial
para
a construção urbanística e
arquitetônica
brasileira.
Em ligeira
pincelada
relembro os pontos de dobra, ou onde e quando a História
dobrou-se, acelerando os processos culturais: os descobrimentos; as
capitanias e a ocupação territorial no
século
XVII; o ouro e a rede urbana pombalina no Século das Luzes;
o
minguado delírio do Império; os Brasis
Imperial
e Republicano na Revolução Industrial; a
resistência
e o retorno agro-pastoril; a modernização de
Vargas a
Juscelino; a inflexão militar à direita; a
eclética
globalização pós-industrial
(tecnologias e
neo-liberalismo).
Então,
a configuração urbana até
meados dos oitocentos era como sempre foi desde o século
XVII,
com princípios dispostos nos bandos e decretos reais ou
imperiais e um grande espaço para ajustar-se às
incidentalidades. Isso teve que mudar para nos integrarmos à
tal Revolução Industrial. Vejamos: entre suas
características sobrevém a da
globalização,
na medida em que estabelece uma rede mundial entre produtos e
consumo, produtores e consumidores, insumos e
fabricação,
matéria-prima e fábrica, patronato e emprego,
etc.
Nesse sistema o Brasil foi um país fornecedor de
matéria-prima
(minerais siderúrgicos, carvão, madeira,
alimentos e
algodão) e as quantidades e tempo para escoamento tornaram
necessária uma rede ferroviária. Essa rede
ferroviária
implicou num salto tecnológico impressionante – de
parcos
negociantes tropeiros ou armadores razoavelmente bem sucedidos para
empresários de volumes jamais vistos, cujo ícone
nacional é o Barão de Mauá. A ferrovia
em si
mesmo foi, e ainda é, componente de
industrialização
e modernização tecnológica.
Enquanto a
máquina a vapor simboliza a primeira
fase da Revolução Industrial, até
então
praticamente contida na Europa, as ferrovias e as locomotivas
simbolizam a segunda fase, quando de fato eclodiram os efeitos
internacionais da industrialização. O Brasil
começou
a se redefinir para integrar os sistemas internacionais da
indústria
e comércio, e essa redefinição ainda
é a
parte visível da herança daquele
período, partes
ainda remanescentes e umas tantas revitalizadas das cidades e das
arquiteturas.
A
necessidade de escoamento dos produtos agrícolas
para a Europa (algodão principalmente), fez com que fosse
construída uma rede ferroviária no Sudeste e no
Nordeste brasileiros. Essa rede necessitou de operários,
classe de pessoas pouco vistas nestas plagas antes disso. Os
operários necessitaram base mínima de vida
– moradias
principalmente, mas também toda sorte de equipamentos que
essa classe nova e esquisita demandava – hospitais, escolas,
lazer,
etc., que resultou nas primeiras vilas, à
semelhança
com os primeiros planos urbanos socialistas do século XIX.
Os
novos modelos de conjuntos ou áreas urbanas, quando
não
cidades inteiras, trouxeram novos modelos de arquiteturas, ou seja,
novos padrões estéticos, programáticos
e
adaptados à modernidade de então. Esses novos
paradigmas foram absorvidos em todo o intervalo entre as
importações
eruditas e as releituras vernáculas, alterando em 50 anos o
modo de construir e a fisionomia das cidades, antes mesmo destas
últimas explodirem no processo de
hiperurbanização
da segunda metade do século XX, quando já vigia o
Modernismo entre artistas e arquitetos.
Nesse
processo estão
todas as modelagens hoje classificadas como proto-modernistas, em
maior ou menor grau: Art
Nouveau, Art
Déco,
Funcionalismo, etc., e seus filhos bastardos ajuntados na vala comum
do ecletismo.
Vejamos
alguns exemplos. Em
João Pessoa, na Paraíba [3], a estrutura urbana
colonial se recompôs, inclusive arquitetonicamente,
amoldando-se à ferrovia e seus componentes. A cidade
à
beira do rio se adaptou para estar também e às
vezes
exclusivamente à beira da ferrovia. Recebeu, assimilou e
desenvolveu modos e formas próprias para as novas
infraestruturas e configurações
arquitetônicas e
urbanísticas – utilitárias e
estéticas.
Em
Corumbá, Mato
Grosso do Sul, a ferrovia criou um novo vetor, longilíneo e
paralelo, afastado da hidrovia (Rio Paraguai), gerando uma
força
funcional concorrente ao porto e ao centro a vinculado. Entretanto e
à medida em que a urbe se desenvolveu e cresceu, a
própria
ferrovia resultou como um limite físico, que a um
só
tempo une e separa, que catalisa mas que demanda ser transposto.
É,
mutatis mutandi,
um novo rio.
Em Pelotas,
Rio Grande do Sul, a ferrovia tanto agregou
facilidades de transporte e modernidade ao sistema portuário
existente, como fez a ele concorrência em período
subseqüente à sua instalação.
Em
São Paulo, a ferrovia não só
redefiniu, mas também simbolizou a própria
modernidade
urbana, com suas estruturas grandiloqüentes e necessidades
espaciais completamente diferenciadas de tudo o mais que já
se
fizera. A Estação da Luz é um
extraordinário
elo entre passado e futuro.
Para este
artigo seria um esforço demasiado
descrever, ainda que sucintamente, como a ferrovia e a modernidade da
Revolução Industrial impactou a cidade do Rio de
Janeiro. Mas vale à pena observar o mapa ou uma foto
aérea
atual e verificar as enormes áreas relacionadas à
ferrovia, maiores até mesmo que aquelas vinculadas ao
sistema
portuário do início do século XX.
Além
das linhas, são numerosas estações de
passageiros e de cargas, armazéns, áreas de
manobra,
oficinas, vilas ferroviárias, etc. As áreas
remanescentes, hoje sendo tomadas para a urbe, abrigam, por exemplo,
uma parte substancial das instalações dos Jogos
Panamericanos, sempre superlativas.
Todas essas
transformações geram novas
mudanças de atividades e de funções.
Sobrevieram
revoluções dentro da
revolução.
Econômica, estética, organizacional, nas
comunicações,
etc, sendo talvez a principal a complexificação
sócio-cultural. Cada componente desses é em sua
origem
uma resultante da revolução industrial como um
fenômeno
geral e global, porém cada uma se consagra como um
fenômeno
de contornos próprios. São engrenagens compondo
uma
única grande máquina.
Outro
aspecto importante é
que a revolução/ferrovia trouxe
funções e
atividades de economia de escala, algo novo ou moderno, e com ela
novos meios e modelagens de interação
econômica e
social, antes restritas a poucas situações e
locais.
Antes mesmo que a historiografia pudesse descreve-las, impuseram-se
sistematizações de toda ordem face ao ordenamento
industrial, aos novos tipos de profissões e
especializações,
emprego e hierarquias de trabalho. Sistemas que poderiam ser
descritos como similares aos portuários, mas de escala
territorial incomensurável, disseminados ao longo das vias e
regiões produtivas. Sistemas que criaram novos assentamentos
nas cidades e criaram suas próprias cidades [4]. Finalmente
e
talvez o aspecto mais relevante ao campo das artes e da arquitetura,
sobrevieram as novas referências estéticas
–
configurações, usos e espaços
correspondentes,
linguagem simbólico-decorativa etc.
Somente
esse aspecto demanda textos mais alentados e
ilustrados, dissertações experientes e teses que
o
investigue em todas as suas possibilidades. Vejamos algumas
possibilidades, com as quais espero provocar o vezo crítico
e
talento escriba dos colegas.
Construir
os edifícios para essas novas funções
foi uma façanha equivalente à engenharia
construtiva
necessária para aeronaves e foguetes. Não existia
nada
que se aproximasse em escala e quantidade ao que a
Revolução
Industrial e, particularmente, a ferrovia exigia. Mesmo considerando
que dos aquedutos saltamos para os viadutos, das catedrais para as
gares, da locomoção para a
auto-locomoção,
foram saltos gigantescos. E, da Europa, para os demais continentes,
exportaram a Revolução Industrial. As ferrovias
levaram
em bloco a tecnologia e, no caso, as técnicas construtivas
que
incluíam a configuração
estético-funcional
e a definição dos materiais, importados ou
não.
Foram reinventadas, das técnicas de grandes estruturas
militares e religiosas, as estruturas das
construções
específicas para a atividade ferroviária
– galpões,
estações, oficinas, etc. Poderia dizer que as
arquiteturas ferroviárias da época foram
híbridos
entre as arquiteturas oficial, religiosa e civil, e, a partir dessa
reinvenção podem ser classificadas de arquitetura
ferroviária, assim como a portuária, a fabril etc.
Entretanto,
para os padrões
residenciais, adaptaram modelos das regiões
européias
donde se originaram, mormente Inglaterra, Alemanha e norte da
Itália. Assim se propagaram no mundo os chalets
alpinos e bretões,
em arquiteturas de ferro, alvenaria, madeira e mistos entre essas
técnicas e materiais. A partir da
importação dos
conjuntos ingleses, belgas e franceses, uma vez estabelecidos novos
padrões, sua reprodução se deu tanto
na
continuação dos sistemas ferroviários
e fabris
quanto nas muitas possibilidades de
reinterpretação, no
intervalo entre os intangíveis erudito absoluto e
vernáculo
puro.
Ad
argumentandum tantum,
finalizo comentando casos de tipologias que se implantaram e
desenvolveram a partir das ferrovias.
Na
Goiânia recém
construída na década de 1940, um setor inteiro
denominado Bairro Popular foi construído com modelos
arquitetônicos vigentes, oriundos dos padrões
ferroviários (os populares chalés), com suas
fachadas
frontais compostas de varanda ou alpendre e uma sala ou quarto
principal, os panos de paredes em alinhamentos diferentes para
movimento
da fachada.
Nas
áreas
históricas, Centro e Porto, de Pelotas, Rio Grande do Sul,
ao
lado de uma certa quantidade de edifícios atuais, predominam
arquiteturas anteriores à década de 1950,
porém
com uma certa profusão de épocas e
configurações,
impondo a classificação estética
genérica
de conjunto
eclético.
São componentes
art-noveau,
art déco,
modernistas e,
especialmente aquelas que, enquadrando-se no ecletismo propriamente
dito [6], podem também ser classificadas como
neo-clássicas,
neo-coloniais etc.. Mesmo com tanta profusão de componentes
configurativos, evidenciam-se aquelas oriundas da ferrovia,
integralmente ou com elementos estilísticos,
tecnológicos
etc.
Em
São Paulo, capital e diversas cidades
interioranas ao longo das ferrovias, estabeleceram-se tipologias
construtivas de vilas ferroviárias, logo copiadas ou
imitadas
para vilas fabris e vilas rurais de conjuntos de fazendas cafeeiras,
que por sua vez estabeleceram tipologia arquitetônica e mesmo
urbanística que foi repetida em conjuntos habitacionais de
pequeno porte ao longo de mais de trinta anos. As famosas casas
geminadas tem origem nesses padrões tipológicos.
Nessa
época estabeleceu-se o padrão do que
até hoje é
considerado o lote urbano mínimo, de 6 metros por 18
até
30 metros, e sobrados sem afastamentos laterais, mas com muito boa
iluminação e aeração na
frente e fundos.
Se, por um
lado, é certo que os elementos
configurativos das construções
ferroviárias
integram os padrões arquitetônicos
proto-modernistas do
fim do século XIX até meados do século
XX,
também é correto reiterar sua qualidade
construtiva, em
termos dos materiais empregados e da mão-de-obra
qualificada,
os primeiros por efeito da importação de
materiais
capazes de realizar os projetos e chegar aos padrões que as
classes emergentes podiam pagar e, a segunda, pela
imigração
de mestres e oficiais, diretamente pelas empresas
ferroviárias
ou já no processo migratório conseqüente
da mesma
Revolução Industrial. Os constantes melhoramentos
e
qualificações das arquiteturas e das cidades
implicaram
nesses casos em ótimas adaptações
climáticas,
no maior conhecimento da resistência dos materiais, entre
outros benefícios creditados genericamente à
modernidade proporcionada pelos avanços
científicos e
materiais da humanidade.
Hoje o
patrimônio ferroviário brasileiro
está reduzidíssimo, pelo sucateamento da RFFSA, e
vampirização do que lhe restava de bens
operacionais e
de valor. O Ministério dos Transportes ainda procura
viabilizar esse transporte, inclusive com um programa oficial de
recuperação e valorização
do patrimônio
histórico para uso turístico, como alternativa
possível
nesse primeiro momento de reação. Por outro lado
a
RFFSA está em liquidação e em vias de
extinção,
sem uma definição inteira de como seu
patrimônio
móvel e imóvel será utilizado e com
parcos
programas de investimentos para um sistema de transporte
ferroviário
nacional adequado ao país e digno de sua própria
história.
Notas
[1]
Introdução
ao marco teórico de minha dissertação
de
mestrado, iniciando-a pelo conceito mais amplo possível de
cultura.
[2] Desde
1980, no âmbito do Iphan, houve
tentativas, inconclusas, de inventariar e estudar mais a fundo as
arquiteturas ferroviárias, tendo como leitmotiv
a
preservação dos remanescentes mais
significativos. O
levantamento mais abrangente foi feito pelo Instituto do
Patrimônio
Cultural do Rio Grande do Sul, publicado em 2002. (v. bibliografia).
[3] Outros
exemplos
interessantes: Recife, PE, Campina Grande, PB, Campinas, SP,
Corumbá,
MS; Curitiba, PR, Florianópolis, SC, Goiânia, GO,
Ouro
Preto, MG, Piranhas, AL, Porto Velho, RO, Recife, PE, São
João
Del Rey, MG
[4] Todo o sistema da
EFMM foi construído com a ferrovia. Rio Tinto, na
Paraíba,
é outro exemplo interessantíssimo.
[5] O ecletismo
em si mesmo pode ser considerado
uma corrente estética, usualmente restrito às
várias
possibilidades de revisões estilísticas, mas
entendo
que sua principal contribuição foi no campo do
atendimento aos programas das novas funções e
atividades do século XX.
José
Leme Galvão Junior é arquiteto do Iphan, paulista
de
nascimento (1950), goianizado pela vida, graduado em Arquitetura e
Urbanismo pela Universidade de Brasília (1978), com mestrado
na mesma universidade (2000), quando escreveu a
dissertação "Patrimônio Cultural Urbano
– preservação e
desenvolvimento".
Ingressou no Iphan em 1980 na então 7ª
Diretoria Regional com sede em Brasília e
circunscrição
em todo o Centro-Oeste, onde ficou por 15 anos, com breve intervalo
na antiga DTC no Rio de Janeiro (1984/85). Em 1996 foi para o DEPROT,
hoje DEPAM. Além das atividades de
fiscalização
dos bens e de obras, projetos de restauração e
outros,
direção de obras, estudos de tombamento, artigos,
palestras, etc. exerceu diversos cargos de
coordenação
técnica e gerência: Chefe de Divisão,
Coordenador
Regional, Coordenador da Comissão Especial de
Brasília,
Coordenador do Programa Monumenta em sua primeira fase de
preparação,
Coordenador de Conservação e de
Proteção
do DEPROT, Gerente de Proteção e depois de Bens
Arquitetônicos do DEPAM. Pintor e poeta bissexto. Contatos:
(61) 34146201 e endereço eletrônico: soneca@iphan.gov.br