As Cidades e os Muros
I
As
cidades, em sua tendência progressiva ao gigantismo, são
produto da revolução industrial, em particular da
chamada revolução científico-tecnológica,
ocorrida na segunda metade do século XIX e que configuraria o
mundo, já na passagem para o século XX, tal qual hoje o
conhecemos: a eletricidade, os derivados do petróleo, os
veículos a motor de combustão interna, as indústrias
químicas, os transportes urbanos, interurbanos e
intercontinentais, o rádio, a fotografia, o cinema, o
fonógrafo, mais tarde, na década de 20, a televisão
e os grandes parques de diversão e lazer destinados ao
entretenimento de uma população de trabalhadores, cada
vez maior nas cidades, vivendo das novas formas de trabalho próprias
da economia industrial.
A
consolidação dos princípios neo-liberais da
economia - cujo fundamento tecnológico viria a ser dado pela
microeletrônica e por suas amplas aplicações,
inclusive no domínio das tecnologias da informação,
fundamentais para o processo de transnacionalização dos
interesses do capital financeiro, fenômeno que passou a ser
conhecido como globalização - não fez senão,
na chamada era pós-industrial, acentuar e acelerar esse
processo de migração e de concentração
urbana.
De
fato, estamos, pela primeira vez na história da humanidade, na
iminência de vermos, nos próximos anos deste início
de século, a população das cidades superar a
população do meio rural, sendo que, em 2025, segundo
projeções da ONU, essa inversão já
mostrará um índice populacional de 61% concentrado em
espaços urbanos.
Em
1950, não havia no mundo mais do que 7 cidades com população
superior a 5 milhões de habitantes; hoje, são dezenas.
Havia apenas 100 cidades com mais de 1 milhão de habitantes;
hoje, elas se multiplicaram a ponto de, em 2025, de acordo com a ONU,
terem uma previsão de 527, e o que é pior, a grande
maioria localizada em países subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento.
II
Mas
pior por que?
Pela
razão simples de que o que é grave em megacidades, como
Nova Iorque, Londres, Paris, Tóquio, que são também
cidades globais, na nova conceituação do urbanismo
contemporâneo, torna-se mais grave em cidades como São
Paulo, ou México, também globais e de populações
gigantescas, mas fora dos centros de concentração da
riqueza e na franjas da periferia, com concentração de
vidas e dos problemas típicos do individualismo exacerbado
desse mundo de concorrência e competição
perversas, cujo casal fundador, nos anos 1980, habitantes do paraíso
terreal anglo-saxão, era formado por Ronald Reagan, então
presidente dos EUA e Margareth Thatcher, então
primeira-ministra da Grã-Bretanha.
Greed
is good ("Ganância é bom")!
Quem
não se lembra do slogan publicitário da política
da dama de ferro, com aliteração, função
poética e demais apetrechos de linguagem, que deixariam o
velho Jakobson, um dos pais da lingüística moderna,
orgulhoso de suas descobertas?
Pobreza
crescente, desemprego, exclusão, violência,
criminalidade, desespero, imobilidade social, legados de desesperança
de pais para filhos, de geração para geração,
incapacidade de intervenção do Estado na formulação
e na orientação de políticas públicas
fortes e eficazes nas áreas sociais e culturais, por ter
cedido às corporações empresariais o
salvo-conduto permanente da livre circulação de seus
interesses focados no lucro, na circulação do capital
financeiro e na concentração da riqueza produzida, numa
escala jamais vista.
O
Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU, criado em 1990 e
que traz indicadores diversos, além dos econômicos,
sobre o tema, apontava, em sua edição de 2000, uma
fortuna de 1.113 trilhão de dólares, acumulado nas mãos
de apenas 200 pessoas em todo o planeta. Este reduzido universo de
distinguidos aumentou em apenas 100 bilhões de dólares
sua fortuna de um ano para o outro. Querem mais! Greed is good!
Por
mais que aumente a riqueza no mundo, sua divisão diminui e o
seu volume se concentra. Basta considerar o fato de que, no países
periféricos emergentes, em desenvolvimento, ou que eufemismo
se queira usar para caracterizá-los relativamente aos países
ricos, a renda total da soma de toda sua população mal
chega a 10% do acumulado sob o controle daqueles 200 poderosos.
Em
São Paulo, por exemplo, onde convivem aspectos próprios
das megacidades, entre eles o da superpopulação e de
qualidade de vida daí decorrente, com características
de cidades globais (centro de poder e de decisão regional e
internacional, na geografia política traçada pela
economia mundializada), nessa cidade de quase 20 milhões de
habitantes, em sua região metropolitana, o desemprego, segundo
dados do SEADE/DIEESE, do IBGE e da Secretaria do Desenvolvimento,
Trabalho e Solidariedade, da Prefeitura do Município, aumentou
de 12,2% da população economicamente ativa, em 1985,
para 17,6%, em 2001. No mesmo período, o tempo de procura de
emprego subiu de 25 para 50 semanas, a renda média das pessoas
ocupadas no setor formal e no informal caiu 21,9%, entre 1995 e 2001,
sendo que, só na capital, de 1991 para 2000, aumentaram em 20%
(de 492 mil para 589 mil) os chefes de família vivendo abaixo
da linha de pobreza, e em 150% (de 124 mil para 311 mil), aqueles sem
rendimento.
Mas
a produção da riqueza, mesmo com os sobressaltos por
que passou a economia brasileira e os problemas estruturais que
continua a apresentar, não deixou de crescer, ainda que
modestamente.
O
que efetivamente não cresce é a sua divisão, o
que nos distancia cada vez mais do Estado de Bem Estar Social que tão
bem caracterizou as utopias compensatórias das
sociais-democracias, sobretudo nos anos 60 e 70, embora cá
pelo Pindorama e pela Latino-América, em geral, vivêssemos
o pesadelo político de sombrias ditaduras.
III
O
crescimento descontrolado das cidades, a migração
constante e maciça do campo para o meio urbano, desacompanhada
de planejamento e de políticas sociais consistentes e
eficazes, tudo isso, sobre o fundo perverso de uma distribuição
de riqueza avarenta e mesquinha, reforça a tendência que
aponta para grandes aglomerações humanas com fossos
internos e externos, urbanos, metropolitanos, regionais e
internacionais, traçando ilhas de desigualdades crescentes e
distribuídas por desertos áridos de terras erodidas,
física, social e culturalmente: Nova Iorque é uma
megacidade e uma cidade global, com uma renda per capita de 12 mil e
420 dólares; Lagos, na Nigéria, cuja renda per capita é
de 68 dólares, deverá, em 2015, segundo projeções,
ser a maior cidade do mundo ocupando populacionalmente, o lugar que
hoje pertence a São Paulo.
O
Relatório de Desenvolvimento Humano da Organização
das Nações Unidas traça bem o mapa dessa erosão
progressiva, desenhando, em números, o sentimento trágico
da terra devastada, do poema famoso de T.S.Eliot , com suas profecias
do fim apocalíptico:
"Torres
cadentes
Jerusalém Atenas Alexandria
Viena
Londres
Irreal..."
|
Em
1820, a diferença de renda entre países ricos e países
mais pobres era de 3 para 1; na década de 1970, já era
de 44 para 1 e hoje a renda é cerca de 80 vezes maior nos
países desenvolvidos.
Há
continentes, quase que inteiros, como a África, em estado de
desolação profunda e tratados como resíduos da
fatalidade triunfante do individualismo liberal.
As
cidades tendem a aglomerar pobreza, dor, sofrimento e abandono.
No
Brasil, a geografia da fome muda o seu traçado e povoa de
recortes dramáticos a vida das populações
urbanas, trazendo para o coração da riqueza do país
as condições de miserabilidade de seus filhos
deserdados pela desesperança da estagnação
social.
É
este o sentido, por exemplo, da reportagem da revista Época
(Ano IV, nº 197, de 25/02/2002, pp 86-91) sobre os novos pobres
brasileiros e os espaços geográficos e sociais de sua
multiplicação nos grandes centros urbanos, como São
Paulo.
IV
Os
cenários não são promissores, mas as razões
de sua existência tampouco são metafísicas e
intangíveis. Ao contrário, são bem concretas,
reais e de materialidade histórica não duvidosa.
É
possível, pois, conter a turbulência dessas águas
pseudo-humanistas e pseudo-novo-renascentistas que espalham erosão
e devastam o planeta, o seu meio ambiente, a natureza, as suas
sociedades, a cultura, os seus habitantes, as suas populações,
os seus indivíduos, o homem, a vida.
Tentativas
se fazem mas são ou paliativos para a pirotecnia da mídia
e do espetáculo, promovidos pelos próprios agentes
concentradores para desconcentrar as massas de deserdados nas grandes
concentrações de pobreza em que vão se
transformando as cidades, ou são sinceramente ineficazes, quer
pela grandeza do poder que pretendem atingir, quer pela organização
incipiente e ainda frágil que a surpresa da nova situação
instala nos olhos assustados dos que não conseguem, pelo
inusitado, formular sequer as perguntas adequadas à condução
de seus destinos dos de suas famílias, sem falar das gerações
futuras e de seus descendentes, para quem o legado de desesperança
e de imobilidade social é assinado no momento mesmo de seu
batismo ou de seu registro em cartório.
Há
movimentos locais, regionais, nacionais e internacionais que buscam,
pela criação de redes, com nós de interesses
comuns, fortalecer a resistência e a luta civil contra os
abusos da riqueza concentrada e contra a omissão dos Estados,
minimizados em suas funções de agente investidor do bem
e da justiça social.
O
Fórum Social de Porto Alegre é um deles e se o seu
foco, muitas vezes, se desvia para o anedótico e o
espetaculoso, nem por isso perde em importância a afirmação
dos intervalos de humanização que é preciso
continuar abrindo no sistema de homogênea indiferença
com que a economia globalizada e o individualismo neo-liberal tendem
a tratar a sociedade, a cultura e a cidadania, diluindo-os na
dimensão plana e rasa do consumo e da mercadoria.
Goebbels,
o famigerado e sombrio ministro da propaganda e da informação
de Hitler, dizia, resumindo a prepotência da razão
política nazista que pretendia dominar, no mundo, corações
e mentes: " - Quando ouço a palavra cultura, saco meu
revólver".
Barbara
Krueger, atualizando essa pérola histórica da sabedoria
das nações, faz, em 1985, uma paródia da
brutalidade impositiva do ministro nazista, com a seguinte sacada:
"
- Quando ouço a palavra cultura, saco meu talão de
cheques".
A
passagem que aqui se faz de um dito para o outro é a que
percorre a longa distância entre a afirmação
autoritária da ditadura política, no primeiro caso,
para a denúncia criativa e livre da ditadura econômica
que vai se instalando nos anos 80, com os governos Reagan - Tatcher,
principalmente, e depois se consolida pelo mundo todo com o fim da
União Soviética, o fim da Guerra Fria e, no campo do
simbólico, mais do que em qualquer outro lugar do imaginário
político e social contemporâneo, com a queda do Muro de
Berlim, que derrubado, fisicamente, não só reunifica a
Alemanha e consolida a hegemonia política dos EUA no mundo,
como também espalha, dos escombros, linhas divisórias,
marcos, fossos, muros de segregação e exclusão
social por toda parte.
A
cultura transformada em consumo engendra as condições
para que o próprio conhecimento se torne mercadoria e não
é por acaso que expressões como "capital de
conhecimento" ou "sociedade do conhecimento" passem a
designar conjuntos de saberes práticos e tecnológicos
que possam ser mesurados em termos de valor agregado e possam
competir em termos de produtos no mercado.
V
É,
pois, importante que haja uma nova ideologia libertária em
relação à ditadura da economia, a ser
empreendida e levada adiante, se quisermos lutar pela utopia da
cidade de nossa infância, onde brilha nossa pátria e,
como apontou Ernst Bloch, lugar onde ninguém jamais esteve.
Lutar
por essa cidade invisível é saber, desde logo, como
assinala Italo Calvino, a propósito de uma de suas cidades
contínuas, que o resultado é o seguinte: "Quanto
mais Leônia expele, mais coisas acumula; as escamas do seu
passado se solidificam numa couraça impossível de se
tirar; renovando-se todos os dias, a cidade conserva-se integralmente
em sua única forma definitiva: a do lixo de ontem que se junta
ao lixo de anteontem e de todos os dias e anos e lustros. A imundície
de Leônia pouco a pouco invadiria o mundo se o imenso depósito
de lixo não fosse comprido, do lado de lá de sua
cumeeira, por depósitos de lixo de outras cidades que também
repelem para longe montanhas de detritos. Talvez o mundo inteiro,
além dos confins de Leônia, seja recoberto por crateras
de imundície, cada uma com uma metrópole no centro em
ininterrupta erupção. Os confins entre cidades
desconhecidas e inimigas são bastiões infectados em que
os detritos de uma e de outra escoram-se reciprocamente, superam-se,
misturam-se. Quanto mais cresce em altura, maior é a ameaça
de desmoronamento: basta que um vasilhame, um pneu velho, um garrafão
de vinho se precipitem do lado de Leônia e uma avalanche de
sapatos desemparelhados, calendários de anos decorridos e
flores secas afunda a cidade no passado que em vão tentava
repelir, misturado com o das cidades limítrofes, finalmente
eliminada - um cataclismo irá aplainar a sórdida cadeia
montanhosa, cancelar qualquer vestígio da metrópole
sempre vestida de novo. Já nas cidades vizinhas, estão
prontos os rolos compressores para aplainar o solo, estender-se no
novo território, alargar-se, afastar os novos depósitos
de lixo."
É
preciso não fechar e manter vivos os caminhos que nos levam,
pela memória, aos lugares sagrados da experiência única
e individual de nossa infância para não perdermos a
força mágica que nos solidariza com a natureza e com a
sociedade.
Não
podemos permitir que se destruam os santuários que, assim,
surgiram, por esses caminhos e que fazem ressurgir, como escreveu
Cesare Pavese, "na memória do homem os lugares da
infância, aos quais se ligam acontecimentos que lhe emprestam o
caráter único e que os distinguem do resto do mundo por
este selo mítico".
Que
as cidades não sejam clausura da memória!