Nem
sempre belas, às vezes ocupando grandes espaços em
terrenos caros e muitas vezes pouco estimadas pela vizinhança,
as instalações e áreas industriais dificilmente
são imaginadas como algo a ser preservado, estudado e
valorizado. Desde a década de 1960, contudo, alguns grupos de
pesquisadores têm se empenhado em mostrar como tanto os bens
materiais como imateriais produzidos pelas indústrias são
importantes para se entender não só a dinâmica da
produção material mas também as relações
históricas e sociais que se desenvolvem em torno dela.
De
acordo com a arquiteta Gabriela Campagnol, os primeiros a se
interessarem pelo tema patrimônio industrial foram os
britânicos, sob a rubrica arquitetura industrial. “Há
uma diversidade de estudos onde o patrimônio industrial se
encontra correlacionado a esse termo, na verdade, uma área de
conhecimento que nasceu da necessidade de estudo e preservação
dos testemunhos industriais ameaçados”, afirma. Segundo ela,
isso se deveu, entre outros fatores, à destruição de
instalações industriais causadas pela Segunda Guerra
Mundial e a conseqüentes transformações urbanísticas.
“A princípio, o interesse britânico se concentrou nos
exemplares oriundos dos tempos da chamada Revolução
Industrial, entre 1760 e 1830. A destruição de importantes
testemunhos dessa época implicou na preocupação
com a preservação de monumentos e artefatos
relacionados à indústria”, explica.
O
interesse histórico inicial por esses objetos e instalações
acabou por abrir os olhos dos pesquisadores para a beleza e as
qualidades, arquitetônicas e culturais, de certas instalações
industriais. Em sua dissertação de mestrado, intitulada
“Preservação do patrimônio industrial na cidade
de São Paulo: o bairro da Mooca”, Manoela Rufinoni afirma
que “o gradadivo entendimento dos remanescentes das atividades
produtivas como documento histórico de interesse, surge
atrelado à valorização da história
industrial como parte integrante da herança cultural. A
atribuição de valor histórico, por sua vez,
alavancou análises mais precisas desses artefatos,
possibilitando a evidenciação de atributos estéticos
e simbólicos até então negligenciados”.
Rufinoni
aponta a mobilização para se tentar salvar a Estação
Euston, em Londres, em 1962, como marco na conscientização
do público sobre o valor do patrimônio industrial. Essa
estação intermunicipal foi a primeira a ser construída naquela cidade e, mesmo com os protestos públicos, foi demolída
e reinaugurada completamente desfigurada em 1968.
Mas,
a partir desse momento, a Inglaterra - e a Europa em geral - tornou-se
“líder” na preservação do patrimônio
industrial. “O Centro e Arquivo Histórico da Mina de Bochum,
na Alemanha, e a Fundação do Museu do Vale de
Ironbridge, na Inglaterra, concebidos como são hoje são
exemplos pioneiros desse processo de preservação do
patrimônio industrial. O Museu da Mina de Carvão de
Argenteau-Trimbleur na Bélgica, convertido num complexo
turístico em 1980, o écomusée de Le
Creusot- Montceau-les-Mines, do final dos anos 1970, e o Museu da
Fábrica de Saint-Etienne, aberto ao público em 1989,
ambos na França, também constituem exemplos de
iniciativas positivas visando a proteção e uso
do patrimônio industrial”, ilustra a arquiteta Campagnol.
No
Brasil, o interesse pelo patrimônio industrial surgiu na mesma
época, na década de 1960. Em 1964, o Iphan tombou os
remanescentes da Real Fábrica
de Ferro São João de Ipanema em Iperó,
São Paulo. Campagnol aponta porém que, no campo
teórico, o interesse surgiu mais tardiamente, em 1976, em
estudo do historiador Warren Dean intitulado “A fábrica São
Luiz de Itu: um estudo de arqueologia industrial”. “Embora a
preocupação com o patrimônio industrial no Brasil
seja comparativamente tardia, o país é um dos poucos a
ter uma área industrial considerada patrimônio mundial.
A cidade de Ouro Preto e suas minas foram listadas pela Unesco como
patrimônio da humanidade”, afirma.
Beatriz
Kühl, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP,
também lembra o caráter pioneiro do tombamento da
Fábrica de Ferro São João de Ipanema mas aponta
uma falta de continuidade dessas ações. “Esse
tombamento poderia fazer antever caminhos pioneiros para a
arqueologia industrial no Brasil; no entanto, iniciativas mais
sistemáticas tardaram a ocorrer, sendo a tutela oficial de
bens vinculados ao processo de industrialização
bastante rara”, escreve ela em artigo para a Patrimônio.
No
final do ano passado, o Iphan realizou outro tombamento importante na
área do patrimônio industrial. Em 10 de novembro, foram
tombados os bens móveis e imóveis do Pátio
Ferroviário da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em
Rondônia. Foi a segunda ação do Iphan em direção
à proteção de uma ferrovia tradicional. O único
caso anterior tinha sido o tombamento do Complexo Ferroviário
de São João Del Rei, em 1986.
Conceito
e instituições
Do
mesmo modo como a idéia sobre patrimônio de uma maneira
geral vem se alargando, o conceito de patrimônio industrial
significa mais do que apenas o antigo prédio onde funcionava
uma determinada fábrica. “Ele não
se limita apenas a um conjunto de bens arquitetônicos ou sítios
cheios de objetos e partes de objetos interessantes. Uma vez que se
detém sobre máquinas, equipamentos, instalações
e imóveis onde se processou a produção
industrial, o Patrimônio Industrial é também a
recolha e o tratamento de um patrimônio técnico de uma
sociedade e de uma comunidade, e esse processo está sempre em
transformação. Nesse sentido, o patrimônio
industrial permite a elucidação da transmissão
de um saber técnico. Ele permite estabelecer, hoje, um elo
entre as formas de produzir - o que envolve homens/mulheres e
máquinas - e a cultura”, escreve o historiador da USP,
Leonardo Mello, em artigo para a Patrimônio.
Segundo
Manoela Rufinoni, um dos autores que contribuiu para que essa herança
da indústria fosse reconhecida como patrimônio cultural
foi Neil Cossons. Ela escreve que, para ele, “o crescimento do
interesse pela arqueologia industrial é a repercussão
não apenas de um movimento de reação contra
a destruição de monumentos industriais relevantes, mas
também a evidenciação de um sentimento
subconsciente de perda que emerge frente à possibilidade de
que uma nova economia, mais uma vez, destrua o existente para
construir o novo, como aconteceu em outras etapas do desenvolvimento
econômico mundial, notadamente nos períodos pós-guerra”.
Gabriela
Campagnol também considera, entre outros, Cossons um dos
principais teóricos e professores da arqueologia industrial.
Ela aponta que ele, ao lado do francês Louis
Bergeron,
está entre os presidentes e fundadores do
Comitê Internacional para a Conservação do
Patrimônio Industrial (TICCIH).
A conceituação mais recente de patrimônio
industrial está na carta de Nizhny
Tagil, documento produzido na reunião do Comitê, em
2003, na Rússia. “Nessa carta, afirma-se que não só
os bens tangíveis são de fundamental importância
como também os intangíveis. Também se valoriza
não só o edifício isolado, mas seu entorno, os
complexos industriais e a paisagem industrial”, comenta Campagnol.
Segundo a carta de Nizhny
Tagil, “O
patrimônio
industrial compreende os vestígios da cultura
industrial que possuem valor histórico, tecnológico,
social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios
englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas,
minas e locais de tratamento e de refino, entrepostos e armazéns,
centros de produção, transmissão e utilização
de energia, meios de transporte e todas as suas estruturas e
infra-estruturas, assim como os locais onde se desenvolveram
atividades sociais relacionadas com a indústria, tais como
habitações, locais de culto ou de educação”.
Desde
2004, atua uma versão brasileira do comitê, ligada ao
internacional: o Comitê Brasileiro para Preservação
do Patrimônio Industrial (TICCIH – Brasil). No mesmo ano de
sua fundação o grupo organizou o 1º. Encontro
Nacional sobre Patrimônio Industrial