Os lucros da
economia cafeeira; a instalação das primeiras
ferrovias; a intensificação da imigração;
o início da industrialização. Todos esses
fatores históricos que caracterizam a segunda metade do século
XIX provocaram um padrão de ocupação urbana que
alterou o perfil de pequenas e grandes cidades paulistas.
Regiões pouco
povoadas ou mesmo com perfil ainda rural começaram a ser
ocupadas, guiadas pela implantação de fábricas e
indústrias ao longo da faixa da ferrovia. Próximas aos
conjuntos industriais e às estações de trem
surgiram as primeiras vilas e bairros operários.
A Vila Manoel Dias,
por exemplo, que integra a Vila Industrial de Campinas (SP), começou
a ser construída por volta de 1908, para os funcionários
da Mogiana. A construção da estrada de ferro trouxe
imigrantes para trabalhar nas oficinas dessa e de outras companhias
ferroviárias como a Paulista. Outras fábricas – como
as de equipamentos agrícolas e os curtumes – também
se instalaram na região. Enquanto os grandes fazendeiros de
café e suas famílias residiam em regiões da
cidade consideradas nobres - como o bairro Cambuí ou mesmo o
“centro histórico” da cidade - os ferroviários e
operários habitavam as vilas e bairros localizados, então,
na periferia da cidade.
Depois de quatro anos de
discussões, o Conselho de Defesa do Patrimônio Artístico
e Cultural de Campinas (Condepacc), em parceria com a Caixa Econômica
Federal (CEF), iniciou intervenções para salvar, em
caráter de urgência, casas da Vila Industrial. Por meio
do Programa de Arrendamento Residencial (PAR) da CEF, 34 casas da
Vila Manoel Freire, que intega a Vila Industrial, serão
restauradas. A previsão é que as obras durem oito meses
e que o programa seja depois estendido a outras vilas do bairro.
A Vila Industrial é
composta por várias casas e vilas, dentre elas a Manoel
Freire, que é tombada pelo Condepacc desde 1994. O tombamento
não impediu que suas casas fossem totalmente degradadas. Desde
o ano passado, cerca de 12 famílias ocuparam a vila e vivem em
condições precárias, ameaçadas pelo risco
de desabamento das casas.
“A opção inicial
do projeto de recuperação da vila é o morador.
Não existe nenhuma intenção de se refazer o
perfil da população local”, garante Daisy Serra
Ribeiro, responsável pela Coordenadoria Setorial do Patrimônio
Cultural, órgão ligado ao Condepacc e à
Secretaria Municipal de Cultura de Campinas. “Há três
semanas, houve uma reunião com as famílias que ocuparam
a vila. São trabalhadores que, se quiserem permanecer no local
após a restauração, poderão participar,
através do arrendamento, da compra das casas”, afirma a
historiadora.
O Programa de Arrendamento
Residencial da CEF possui uma linha especificamente voltada para a
recuperação de imóveis privados reconhecidos
como patrimônio histórico. A Vila Manoel Freire foi
comprada pela HM Construtora, empresa que será responsável
pelas obras de recuperação. Depois de restauradas, as
casas deverão ser vendidas, através da CEF, a preços
considerados populares. “O arrendamento da CEF é voltado
para a população de baixa renda, que poderá
comprar a casa através de prestações que não
deverão ultrapassar meio salário mínimo”,
conta Daisy Ribeiro que ainda lembra que, segundo as regras do PAR,
um proprietário não poderá adquirir mais de uma
casa.
Memória
Formadas por
pequenas casas geminadas, as vilas operárias costumavam ser
regidas por rígidas regras de comportamento impostas por seus
proprietários que nem sempre eram os donos das fábricas:
muitas vilas pertenciam a imigrantes mais abastados que alugavam suas
casas aos operários. O imigrante português Manoel Freire
obrigava as moradoras de sua vila a freqüentar diariamente a
missa na capelinha – já demolida. Costumava, também,
“vigiar” os seus moradores através de uma abertura feita
no telhado de sua casa.
Essas e outras
histórias estão presente no livro Além do
túnel, uma vila - Histórias e personagens do primeiro
bairro operário de Campinas de Larissa Velasco. Através
de depoimentos de 13 moradores antigos do local, a jornalista
registrou fatos, lugares, pessoas, ruas e eventos que marcaram sua
história. “Com a ajuda de uma antropóloga e uma
historiadora, relacionei todos esses elementos com a história
do surgimento do bairro e com o próprio conceito de bairro
operário”, afirma Velasco. Parte de sua família
reside na Vila Industrial, o que facilitou a descoberta e o contato
com os personagens mais significativos do bairro.
Carnaval, futebol,
igreja, infância e escola foram os temas mais abordados pelos
entrevistados. Mas num bairro considerado “operário” não
se fala sobre o passado na fábrica, as relações
entre patrões e empregados ou a dura rotina de trabalho?
“Todos os moradores com quem conversei disseram que gostavam dos
seus respectivos trabalhos” lembra Larissa Velasco. “A
proximidade das fábricas e estações ferroviárias
com as vilas de moradia também foi interpretada de modo
positivo. Existia a possibilidade de se almoçar em casa, com a
família e de se conviver mais intensamente com os colegas de
trabalho que também eram seus vizinhos”. A segregação
do bairro operário pelo restante da cidade também fazia
com que os seus moradores permanecessem isolados nos limites postos
pela linha do trem.
Segregação
Além do
túnel, uma vila é uma referência ao extenso
túnel subterrâneo, inaugurado em 1915 e que faz a
ligação entre a Vila Industrial e o centro da cidade de
Campinas. Para Larissa Velasco, o título do livro também
é “uma reposta àqueles moradores da cidade que
costumam comentar: ‘a Vila Industrial é ‘distante’”.
Mais do que uma distância física ou geográfica, o
comentário expressa a desvalorização simbólica
e material de um patrimônio histórico da cidade. A
“distância” vira descaso e resulta em degradação.
Para a jornalista, a
verdadeira revitalização da Vila Industrial depende,
assim, de um trabalho de conscientização sobre sua
importância junto à população de Campinas
que, ainda hoje, a estigmatiza. “Desde sua criação,
as vilas operárias de Campinas sofreram a discriminação
dos moradores da cidade, por ser um lugar de pobres e operários
e também pelo tipo de estabelecimentos que lá existiam
como o matadouro municipal, curtumes e lazaretos. A Vila Industrial,
hoje, está esquecida e é desvalorizada por uma grande
parcela da população que nem sequer sabe da sua
importância histórica e arquitetônica”, afirma a
jornalista.
No dia 7 de dezembro de
2005 houve o lançamento dos 200 exemplares do livro e uma das
casas mais representativas do conjunto da Vila Manoel Dias -
conhecida como Castelinho - foi demolida devido ao risco de
desabamento. “Agora a casa só existe na foto estampada na
capa do meu livro”, lembra Velasco.