Vazio,
abandonado e sofrendo a degradação do tempo. Quando, no
final de 2003, uma rede de hipermercados alugou o edifício
central e outros anexos do Cotonifício Crespi, a notícia
foi bem recebida pelos moradores do bairro da Mooca, em São
Paulo. Esses moradores só não contavam com o fato de
que o projeto de restauro previa a própria demolição
do prédio.
A
restauração do Cotonifício Rodolfo Crespi, um
conjunto de edifícios industriais para tecelagem fundado em
1897, é controversa por ser ilustrativa de um dos problemas
mais recorrentes na preservação do patrimônio
industrial: a sua descaracterização ou destruição.
“O problema da restauração do Cotonifício
Crespi é que se priorizou o seu novo uso em detrimento do seu
valor histórico. Esse é o erro mais comum cometido nas
restaurações de edificações industriais”,
afirma Cláudia Yamada, tecnóloga em construção
civil e especialista em patrimônio arquitetônico. Yamada
foi uma liderança importante na mobilização que
contestou o projeto de restauração do Cotoníficio.
“Não
considero a obra realizada no Cotonifício Crespi como um
restauro já que não foram respeitadas suas
características históricas, estéticas e
memoriais. A estrutura foi toda descaracterizada, apenas a fachada
foi mantida, boa parte do conjunto industrial foi demolido para ser
transformada em estacionamento”, afirma Manoela Rossinetti
Rufinoni, arquiteta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo (FAU/USP). Rufinoni destaca que o
edifício central do Cotonifício foi todo demolido por
dentro e sua estrutura de vigas e pilares metálicos –
importados da Europa em meados da década de 1920 - foi
retirada e substituída por uma estrutura de concreto armado,
mais “adequada” para abrigar as prateleiras padronizadas do
hipermercado.
Projetado
pelo arquiteto italiano Giovanni Battista Bianchi, além de ser
um relevante patrimônio industrial devido à sua
arquitetura, o Cotonifício também é importante
por ser representativo da própria história da
industrialização e suas relações de
trabalho na cidade de São Paulo, que abriga momentos como as
primeiras greves operárias realizadas no Brasil em 1917.
Mobilização
“Dentro
do quadro de possível total abandono do Cotonifício –
abandono que caracteriza outros edifícios históricos da
região – talvez a restauração realizada tenha
sido a melhor solução encontrada”. Cláudia
Yamada faz essa ressalva considerando todo o processo de mobilização
realizado contra as demolições. O movimento, segundo
ela, surtiu efeitos positivos: fez com que o hipermercado fizesse
alterações no projeto original de restauração
que previa a preservação de apenas duas fachadas do
edifício. Segundo Yamada, por conta da pressão popular
conseguiu-se salvar a volumetria e importantes registros históricos
do Cotonifício, como o último andar do edifício
central que foi inteiramente preservado. “Conseguimos fazer com que
uma parte da estrutura que é importante para a memória
afetiva das pessoas fosse mantida”, lembra a tecnóloga.
Segundo
Manoela Rufinoni, muitos moradores da região aprovaram o
projeto de restauração quando ele ainda era uma
promessa no papel. Isso teria acontecido pelo fato de serem leigos
no assunto e não saberem, exatamente, no que ele implicava.
Por conta disso, as mobilizações contra a restauração
só se intensificaram com o início da demolição
do prédio, numa manhã de domingo de julho de 2004. “As
pessoas mais idosas do bairro foram as que mais se envolveram,
principalmente aquelas que guardam lembranças da fábrica
em funcionamento ou aquelas cujos familiares trabalharam no
Cotonifício. Uma imigrante romena de 82 anos, que trabalhou no
Cotonifício, chorou ao assistir à demolição
pelos guindastes e teve o impulso de pegar um tijolo para guardar de
lembrança”, lembra Rufinoni.
Alguns
moradores se organizaram, então, para tentar barrar o
prosseguimento da demolição. O Departamento de
Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura de São
Paulo e o Ministério Público Federal conseguiram uma
liminar para paralisar as obras de restauro. Mas o embargo durou
pouco tempo devido ao fato do Cotonificio não ser um
patrimônio histórico tombado – o processo de
tombamento encontra-se em análise há 13 anos no DPH. A
obra prosseguiu e, em março de 2005, o hipermercado foi
inaugurado.
Especulação
imobiliária
A
Mooca é próxima do centro da cidade e também é
servida por linhas de metrô. Por conta disso, a especulação
imobiliária no bairro vem crescendo desde a década de
1980 e alterando sua paisagem com a verticalização
promovida pela construção de grandes edifícios.
Segundo Manoela Rufinoni, o tipo de restauração
realizada no Cotonifício Crespi deve ser entendida também
nesse contexto de valorização imobiliária do
bairro. “Trata-se da ocupação de áreas
valorizadas. A ‘restauração’ do Crespi foi uma
desculpa para a ocupação do solo, do terreno do
Cotonifício”.
Apenas
o seu edifício central - de todo um conjunto de edificações
interligadas e que tomavam todo um quarteirão do bairro - foi
“preservado”. Ao redor desse quarteirão do Cotonifício
existem ainda uma série de outros imóveis
historicamente importantes em seu entorno: o estádio do
Juventus – time de futebol formado por funcionários do
Cotonifício no início do século XX – creches e
casas construídas para os operários e remanescentes do
antigo Hipódromo de São Paulo que se localizava na
Mooca antes de ser transferido para Cidade Jardim.
Para
Cláudia Yamada, a especulação imobiliária
na região ameaça esses e outros patrimônios
industriais tais como a Companhia Antárctica Paulista onde
ainda se encontra o maquinário original da cervejaria que pode
vir a ser destruído para a construção de mais um
“empreendimento de alto padrão” como anunciam os outdoors
espalhados pelo bairro.