"O
meu nome é Aparício Rodrigues Filho. Nasci em Rio
Branco do Sul, Paraná. Eu sou operador de guindaste. Eu
comecei trabalhar em 28 de outubro de 1977. De motorista, eu passei
para operador. Foi indo. Faz 26 anos. 26 anos de empresa. Naquele
tempo tinha forno quatro ou cinco que tem ainda e moinho de farinha,
tudo na fábrica um. A fábrica dois não existia
ainda. Essa fábrica que a gente está aqui era uma vila,
Vila Nova que eles falavam. A gente trabalhava mais solto e também
sem segurança. Hoje você trabalha com mais segurança
e você mais tranqüilo também. Antes não.
Você não tinha esse negócio de uniforme, sapatão.
Você vinha com os que você tinha".
O
testemunho acima compõe o acervo de 270 depoimentos do projeto
Memória Votorantim. Iniciado em 2002, já desenvolveu
uma série de ações de preservação
e memória, publicações, exposições,
vídeos e campanha de histórias, com a missão de
registrar, preservar e disseminar a memória do Grupo
Votorantim. Essa foi a maneira que o grupo encontrou para tratar sua
história, que se confunde com a história da
industrialização brasileira. Entretanto, do mesmo modo
que o conceito de patrimônio industrial é algo novo,
esse tipo de iniciativa entre as empresas ainda está apenas
começando.
Segundo
a arquiteta Beatriz Mugayar Kuhl, (veja artigo neste número)
preservação, conservação e restauração
deveriam, por definição, estar vinculadas a ações
culturais. Assim, questões de ordem prática, de uso, de
exploração econômica, nunca seriam as únicas
determinantes para decisões de preservação. Mas,
quando se trata de patrimônio industrial, isso é ainda
mais difícil.
No
Brasil, o primeiro tombamento de patrimônio industrial pelo
Iphan, ocorreu em 1964. O alvo foi o conjunto formado pelos
remanescentes da Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema, no
município de Iperó. A justificativa se deu, no entanto, em
primeiro lugar pela "importância de ali ter nascido, a 17
de fevereiro de 1816, o insigne historiador brasileiro Francisco
Adolfo Varnhagem, Visconde de Porto Seguro". Depois, pela
importância da fábrica para a história da
indústria siderúrgica nacional. Na época, havia
um projeto para criar, no local, um museu do ferro, idéia que
não prosperou. Segundo a arquiteta Cláudia dos Reis e
Cunha, que pesquisa o patrimônio cultural da cidade de
Sorocaba, a restauração, na década de 1970, da
Fábrica de Armas Brancas, que faz parte do conjunto tombado,
visava adequá-la para essas instalações, mas o
museu nunca foi criado. Hoje, o local é uma área de
proteção ambiental e quem cuida da manutenção
é o Ibama, sendo precária a conservação
dos prédios.
Sorocaba,
no interior de São Paulo, foi, durante todo o século
XX, um importante pólo da indústria têxtil
brasileira. As fábricas transformaram a face da cidade,
substituindo construções de taipa pelas de alvenaria,
fazendo surgir vilas operárias, aumentando a população,
melhorando a infra-estrutura com rede de água, esgoto, energia
elétrica, telefones e telégrafo, conferindo ritmo
urbano à cidade. Hoje, os operários ainda estão
lá, mas não é na cidade ou às margens da
ferrovia que estão seus prédios. No século XXI,
as indústrias de Sorocaba, assim como em muitas outras cidades
brasileiras, estão afastadas do centro, localizando-se no
Distrito Industrial. "As antigas fábricas desativadas não
mais determinam os contornos de Sorocaba, ao contrário, já
estão incorporadas ao centro urbano e ainda que a grande
estrutura fabril continue de pé, permanece sem uso",
afirma Cláudia dos Reis e Cunha.
Segundo a arquiteta,
das seis grandes têxteis que funcionavam ali, duas, a Santa
Maria e a Votorantim, foram demolidas, outras duas a Santo Antonio e
a São Paulo estão abandonadas, já bastante
deterioradas e ainda sem destinação. Os herdeiros
dessas empresas tiveram que entregar as propriedades para leilão
por conta de dívidas de impostos. Já acontecerem dois
leilões da Santo Antonio, mas nenhum arrematante. Apenas uma
das indústrias, a fábrica de tecidos Santa Rosália,
foi aproveitada e hoje é ocupada por um supermercado.
"Acredito que a transformação desses espaços
não é apenas "um bom caminho", é o caminho
inevitável. As antigas têxteis não têm
condições de se manterem como espaços produtivos
na sociedade atual, portanto é fundamental pensar em
alternativas de uso que integrem novamente os espaços na vida
da cidade. A grande questão não é tanto a
destinação, mas como é feita essa adaptação
para o novo uso. As intervenções têm que ser
feitas mediante um bom e detalhado projeto de arquitetura, que leve
em conta as especificidades do edifício antigo, que deve ser o
foco central e não um mero "detalhe pitoresco". Infelizmente,
na maioria dos casos, como no da Santa Rosália, as coisas são
feitas sem o devido cuidado, ocasionando perdas irreparáveis
às edificações", acredita Cláudia.
Os
problemas que as antigas empresas de Sorocaba enfrentam ocorrem de
modo geral, no estado de São Paulo, onde processo de falência,
desmonte e conseqüentemente o descarte do patrimônio
arquitetônico e histórico das indústrias ocorre
principalmente pela quebra e endividamento causado por mudanças
na política industrial e econômica, que geram inúmeros
processos jurídicos contra a empresa. Henrique Vichnewski,
arquiteto, pesquisou as indústrias Matarazzo, grupo que tinha
mais de quarenta fábricas instaladas em trinta cidades do
interior do estado. Ele explica que as atitudes tomadas frente aos
processos de falência variam desde a venda de todo o conjunto
de edificações, maquinários, etc para outra
empresa dar continuidade à produção, até
a venda somente das máquinas a empresas interessadas. "É
comum todo o maquinário, estruturas metálicas em geral,
o sistema de incêndio, tubulações serem vendidos
como sucata a preços muito reduzidos, como ocorreu na Fiação
e Tecelagem Cianê (antiga Matarazzo), em Ribeirão
Preto", conta. "A venda integral desses complexos
industriais, para incorporar novos usos, preservando ou não
sua estrutura e tipologia formal original e exemplar é rara,
principalmente diante da situação econômica e
cultural do país, que cultua o "novo" e despreza os
testemunhos da história", completa.
O
fato desses processos jurídicos e fiscais ficarem entravados
na justiça por anos faz com que, na maioria dos casos, essas
indústrias fiquem muitos anos abandonadas. Assim, o tempo vai
corroendo pouco a pouco importantes vestígios do patrimônio
industrial brasileiro, e não se trata apenas das edificações.
Conforme explica Vichnewski, a lentidão dos processos, aliada
à pouca valorização dessas fábricas
antigas enquanto parte integrante da história da
industrialização, gera dois importantes problemas.
Primeiro, a demolição de fábricas diante da
crescente valorização de seus terrenos abandonados, que
são vendidos para quitar as dívidas. Esse processo está
atrelado tanto ao crescimento urbano da cidade em direção
às regiões industriais periféricas, como também
o aumento das atividades de comércio e serviços nos
bairros industriais. Não menos importante é o abandono,
desaparecimento ou acesso proibido aos arquivos e registros da
história empresa. "Em alguns casos, esses documentos são
abandonados em locais sujos, úmidos e misturados com
substâncias tóxicas, na própria fábrica,
acelerando seu processo de degradação. A razão
desse abandono e falta de respeito com os arquivos documentais da
indústria ocorre pelo medo de servirem como provas aos
inúmeros processos abertos por ex-operários",
acredita.
Guardando
o que não pode ser esquecido
Enquanto alguns
registros do patrimônio industrial brasileiro se perdem para
sempre, algumas empresas começam a trabalhar com a chamada
memória institucional. Freqüentemente, buscam ajuda
profissional para colocar isso em prática. O Museu da Pessoa,
que fica na cidade de São Paulo, já conduziu cerca de
sessenta projetos com empresas de todo tipo e tamanho. "As
empresas nos procuram perto de celebrações, em especial
nos aniversários com datas redondas: 50, 60, 70 anos. São
empresas preocupadas em registrar e preservar sua memória",
conta a coordenadora dos projetos de memória institucional
(PMI) do Museu, a historiadora e jornalista Cláudia Fonseca.
Primeiro o Museu busca entender a demanda da
empresa e sua cultura. Depois, busca avaliar a relação
entre o trinômio tempo, equipe e produto e, então,
sugere-se o tipo de projeto que se adapta ao que a empresa precisa.
"É importante ressaltar que só realizamos projetos
nos quais o patrimônio imaterial estará garantido, ou
seja, se uma empresa nos procura e não deseja utilizar a visão
de seus funcionários, não fazemos o projeto",
enfatiza Fonseca. "É evidente que as empresas têm
conflitos, mas o Museu tem tido sucesso ao explicar a importância
da participação de todos na construção da
uma história", completa. Assim, operários,
diretores, serventes, fornecedores, clientes, aposentados são
chamados a contar a sua história. O projeto com o Grupo
Votorantim seguiu essa metodologia de trabalho.
O
Memória Votorantim objetiva a implantação do
Centro de Memória através de ações de
resgate e preservação da história do Grupo. A
construção do programa envolve a história dos
funcionários e das comunidades nas quais a empresa está
inserida. Ao mesmo tempo, promove um programa de pesquisa permanente,
que inclui ações de preservação do
patrimônio arquivístico e museológico. Hoje, o
projeto conta com mapeamento de 30 mil documentos datados a partir de
1910, além de publicações de livros, revistas e
relatórios, fotografias, filmes, manuscritos, discos, fitas
magnéticas, mapas, gravuras, desenhos, cartazes, uniformes,
medalhas, condecorações e equipamentos. Em processo de
catalogação informatizada, o acervo segue padrões
arquivísticos e museológicos. O acervo de memória
oral, com ampliação permanente, inclui cerca de 270
depoimentos, como o que abre este texto, coletados a partir de 2003.
O horizonte do projeto é o ano de 2018, data comemorativa do
centenário da Votorantim. Segundo a coordenadora, Inês
Sadalla, a elaboração do memorial deu chance a muitas
pessoas de registrarem o que aprenderam durante anos de trabalho na
empresa. "Eles nos contaram coisas que não podiam ser
esquecidas", diz.
Também
é possível encontrar no Portal Memória
Votorantim (http://www.memoriavotorantim.com.br)
o registro dos processos técnicos utilizados nas atividades do
grupo. O funcionário Divaldir Alfredo Haisi, por exemplo,
descreve com detalhes, em seu depoimento, a evolução do
processo de produção de cimento na companhia.
O
conteúdo produzido pelo projeto está sendo utilizado em
escolas públicas por alunos e professores.
A
história da empresa como fator de diferenciação
Outra
empresa que está construindo um centro de memória
virtual é a indústria de medicamentos EMS Sigma Pharma.
Com a ajuda do Centro de Memória da Unicamp (CMU), a empresa
organizou também um museu que ocupa a casa onde morou seu
fundador e se prepara para publicar um livro com a trajetória
da indústria, que começou em 1950 com uma pequena
farmácia em Santo André, no ABC paulista. Fernando
Abraão, coordenador da área de Arquivos Históricos CMU, explica que muitas
empresas se interessam pela reconstrução e preservação
de sua memória quando assumem grande proporção e
sentem que podem perder sua identidade, sua origem. "Há
também a intenção de mostrar para os
colaboradores como começaram "de baixo", que houve trabalho,
esforço. Isso gera comprometimento e identificação",
explica ele. A idéia da constituição
do Memorial surgiu por iniciativa da presidência da empresa, na
ocasião das comemorações de quarenta anos do
Grupo.
O
projeto localizou documentos históricos, embalagens, fotos,
utensílios de farmácia, além do depoimento de
colaboradores ainda trabalhando e aposentados. Todo o material está
catalogado e disponível física e digitalmente. Algumas
peças foram escolhidas para serem expostas. "Montamos uma
lista de entrevistados, fizemos uma campanha interna com os
funcionários informando sobre o memorial e solicitando a
doação de materiais para o projeto. Todos os
departamentos foram envolvidos no sentido de coleta de material. A
adesão dos entrevistados foi fantástica”, conta
Débora Mori, gerente de marketing da empresa e que coordenou o
projeto do memorial na Sigma Pharma.
O
Grupo EMS mantém um programa de visitas na planta de
Hortolândia, interior de São Paulo, para profissionais
de saúde, da área de farmácia e estudantes de
farmácia e medicina. O Memorial está incluído no
itinerário percorrido pelos visitantes. Em média, a
empresa recebe trezentas pessoas por mês. Neste caso o
patrimônio industrial também é um diferencial.
"Num momento econômico de concorrência muito
acirrada, a história da empresa também é um
fator de diferenciação", diz Ema Camilo,
historiadora da equipe do CMU.