"Cada
engenho é uma máquina e fábrica incrível.
Em cada um, de ordinário há seis, oito ou mais brancos
e, ao menos, 60 escravos, que se requerem para o serviço. Os
trapiches, engenhos que moem a cana com bois, requerem 60 bois, os
quais moem de doze em doze, revezados: começa-se de ordinário
a tarefa à meia noite e acaba-se no dia seguinte às
três ou quatro horas depois do meio dia. Em cada tarefa se
deita 60 a 70 formas de açúcar branco e mascavo. Cada
forma tem mais de meia arroba. Os serventes andam correndo, e por
isso morrem muitos escravos. Tem necessidade cada engenho de feitor,
carpinteiro, ferreiro mestre de açúcar com outros
oficiais, que servem do purificar. Os mestres de açucares são
os senhores do engenho, porque em sua mão está o
rendimento e ter o engenho fama, pelo que são tratados com
muitos mimos, e os senhores lhes dão mesa, e cem mil réis,
e outros mais a cada ano".
O trecho acima foi
retirado de uma carta escrita pelo padre jesuíta Fernão
Cardim, em missão no Brasil, entre os anos 1583 e 1590. O
padre tenta descrever aquele que será o primeiro
empreendimento industrial no Brasil. Quando se fala em indústria
brasileira a imagem corrente relaciona-se muito fortemente a
construções industriais do fim do século XIX e
início do século XX. No entanto, os engenhos, por
exemplo, marcam uma das primeiras atividades industriais do Brasil.
"Os engenhos podem
ser considerados patrimônio industrial porque, embora não
se refiram ao período da Revolução Industrial ou
mesmo posterior, são registros do trabalho humano, do
maquinário, das ferramentas e processos de produção
que consideramos patrimônio industrial. Aliás, os
primeiros trabalhos acadêmicos realizados no Brasil, nas
décadas passadas, em termos de patrimônio industrial,
foram exatamente sobre engenhos do Nordeste", afirma Cristina
Meneguello, historiadora da Unicamp e presidente do Comitê
Brasileiro de Preservação do Patrimônio
Industrial (TICCIH-Brasil).
Uma
oportunidade de estudar o patrimônio industrial do Brasil
Colonial pode ser encontrada nas ruínas do Engenho São
Jorge dos Erasmos, na cidade de Santos, litoral de São
Paulo. Fundado por Martin Afonso de Souza, o primeiro proprietário,
governador da então Capitania de São Vicente, o
Engenhos dos Erasmos é o mais antigo preservado no país.
Pertence, desde 1958, à Universidade de São Paulo
(USP). Foi tombado pelo Iphan em 1963 e pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) em 1974. Em
maio de 1995, a USP e a Prefeitura Municipal de Santos assinaram um
termo de compromisso para escavação, revitalização
e conservação do Engenho. A primeira etapa da escavação
já foi concluída, permitindo avaliar o potencial
arqueológico para posterior escavação mais
detalhada e sistemática na área. "As ruínas
já se constituem em um conjunto notável para criar uma
narrativa sobre o tempo remoto do passado colonial, ou para relatar
as lutas dos negros desterrados e dos índios espoliados, sendo
ambos escravizados, ou mesmo para falar da terra com sua imensa
biodiversidade", explica Maria Cecília França
Lourenço, que coordena o projeto das Ruínas do Engenho
dos Erasmos. Segundo ela, é fundamental manter a área o
mais visível e autêntica, como um museu ao ar livre.
Entretanto,
a despeito da importância histórica dos engenhos, sua
preservação não é prática comum no
país. O Engenho dos Erasmos, por exemplo, é o único
exemplar que restou na Baixada Santista. "No Brasil, o período
republicano (1889) interessado em cunhar um passado, sentiu a
necessidade de criar marcos e fatos memoráveis, para se
garantir a coesão identitária. Contudo, a escrita se
voltou para a memória ligada não à matriz
portuguesa, mas sim direcionada à separação
política entre Ele, o colonizador, e Nós, os
colonizados. Bastaria mencionar a valorização da figura
de Tiradentes e dos locais em que este viveu, ambos alçados ao
status de memoráveis", acredita Maria Cecília. Os
processos de tombamento de engenhos do Iphan são da década
de 1940 e 1960. Nesses processos, a documentação
sobre as motivações para o tombamento é escassa. Entretanto, há
que se ressaltar que, mesmo nesses engenhos tombados, a valorização
se dava, na maior parte das vezes, em relação ao estilo
arquitetônico, à casa grande, às capelas e não
ao engenho enquanto patrimônio industrial, testemunho do ciclo
da cana no Brasil. Por conta disso, boa parte dessas edificações
simplesmente desapareceu. O Engenho Poxim, em São Cristóvão,
Recife, teve a capela, construída em 1751, tombada. Na Bahia,
foram tombadas as obras de arquitetura civil e religiosa do Engenho
Vitória, na cidade de Cachoeira, Bahia. Estão protegidas
a parte antiga do sobrado da residência - incluída a
capela e o crucifixo do altar -, uma senzala e o banheiro primitivo,
os dois últimos nas imediações do sobrado.
Para
o pesquisador Fernando Luiz Tavares Marques, do Museu Goeldi, no
Pará, os engenhos podem oferecer reflexões sobre vários
aspectos desse tipo de empreendimento. "Esses locais guardam
resquícios de atividades humanas que devem ser reveladas e,
principalmente, interpretadas de maneira crítica e
contextualizada", diz. Ele pesquisou as ruínas do Engenho
Murucutu, em Belém. O engenho possui quase trezentos anos de
história. Em meio à sua documentação de
venda, em 1841, está o registro dos bens: casa de vivenda,
casa do engenho, senzala, roda d água, moendas de ferro, um
vapor, serraria, alambique, tachas de ferro, balança e
pertences da capela. O documento menciona ainda 48 escravos. Segundo
Marques, o processo de colonização européia na
bacia amazônica, a partir do fim do século XVI,
motivou-se a partir de comércio de açúcar no
Amazonas. Em pesquisas de arqueologia, desenvolvidas nas proximidades
de Belém desde a década de 1990, foram registrados
cerca de 40 sítios históricos de engenhos construídos.
“Inteiramente esquecidos em meio às plantações
e roças nos terrenos dos moradores ribeirinhos atuais, as
evidências remanescentes do sucesso alcançado durante o
período colonial transformaram-se irreversivelmente em sítios
arqueológicos”, afirma. “O desconhecimento sobre o
significado histórico dos sítios pelos moradores tem
implicações não apenas para a preservação
da integridade dos vestígios materiais em si, mas também
na perda da memória cultural desta população”,
completa.
Em
1940, o sítio do Engenho Murucutu tornou-se patrimônio
da União ao ser incorporado pela Embrapa, que lá
implantou um campo experimental de práticas agrícolas.
Todavia, apesar de ser propriedade do Estado, e ser tombado como
patrimônio histórico, condições que
deveriam garantir sua proteção e conservação,
o local foi alvo de destruição em 1995, quando um
operário de uma construtora que realizava obras de manutenção
da estrada entrou no sítio com um trator e derrubou quase
todas a paredes remanescentes da Casa Grande a fim de obter pedras
para tapar buracos da rodovia. Escavações realizadas na
área, em parte com suporte financeiro do Iphan, permitiram
identificar a sequência cronológica do local através
da caracterização da cultura material relacionada às
atividades cotidianas dos habitantes do engenho em seus vários
espaços. “Sua localização reflete uma opção
que atende algumas condições específicas e
fundamentais desse tipo de empreendimento. Por exemplo, o engenho
encontra-se assentado em paisagem típica de estuário,
na transição da terra firme para várzea, com
disponibilidade de força hidráulica, no caso das marés,
para movimentar as moendas, solos férteis para as plantações
e o próprio igarapé para escoamento da produção,
entre outros”, conta Marques. O material arqueológico
coletado nas áreas da casa grande e da capela totalizou quase
cinco mil fragmentos. A cultura material contextualiza-se
perfeitamente com as informações históricas. A
cerâmica não torneada encontrada, que é
característica da cultura indígena ou cabocla regional,
pode estar relacionada à presença de índios
usados como mão-de-obra, referidos em documentos de 1780.
O
patrimônio sobre trilhos
"O
século XIX ainda está para ser decifrado, desvendado e
compreendido, para então conquistar o direito de figurar com
seus bens culturais em nosso patrimônio histórico e
artístico oficial, até hoje reconhecidamente desfalcado
de produção significativa daquele tempo, porque aos
zeladores de nossa memória só as realizações
diretamente ligadas à casa reinante em nosso Império é
que valeu a pena guardar. Contam-se nos dedos conjuntos
arquitetônicos urbanos do século passado, remanescentes
da produção particular, ainda conservados e tombados. A
gente tem a impressão de que o século XIX nunca foi
levado muito a sério pelos vigilantes de nossa arquitetura",
afirma o arquiteto e historiador Carlos Lemos no prefácio do
livro Arquitetura de ferro no Brasil, de Geraldo Gomes da
Silva. É justamente no século XIX que chega ao Brasil
outro representante de um ciclo econômico de importância
fundamental na história brasileira: as ferrovias, que aos
poucos começam a ser reconhecidas e preservadas como parte
relevante do patrimônio industrial brasileiro.
Segundo
a arquiteta Beatriz Mugayar Kuhl, no livro Arquitetura de ferro e
ferroviária em São Paulo, os
caminhos de ferro marcaram a fisionomia das regiões e a
paisagem das cidades. Elas são exemplos de construções
industrializadas, cuja origem foi ditada pelas necessidades de um
produto agrícola, o café. A definição
utilizada pelo TICCIH-Brasil acompanha a definição do
TICCIH internacional, proclamada em 2003. "Consideramos toda a
estrutura ferroviária, incluindo trilhos, máquinas e
estações, como um importantíssimo exemplo do
patrimônio industrial brasileiro, sobre o qual há já
muitos estudos realizados ou em fase de realização",
explica Meneguello, presidente do Comitê brasileiro.
Símbolos
de modernidade e avanço tecnológico, as ferrovias
influenciaram o sistema viário das cidades, forçando a
criação de novas ruas de acesso, causando problemas de
transposição de suas vias, solucionados de várias
maneiras, e alterando o sistema de transporte público urbano
para proporcionar o acesso às estações. As
estações também atraíam para seu entorno
serviços complementares, como hotéis e comércio
em geral. "Muitas vezes influenciaram o próprio sistema
de identificação das ruas em uma cidade, caso de Rio
Claro, por exemplo, onde ruas e avenidas são numeradas a
partir da estação ferroviária", revela
Kuhl, em seu estudo sobre as ferrovias no estado de São Paulo.
A arquiteta conta ainda que não há um levantamento
completo do patrimônio ferroviário nem das estações
existentes no estado. Apenas onze estações foram
tombadas pelo Condephaat, entre elas a Estação da Luz e
a Estação do Brás, na cidade de São
Paulo. Depois da Segunda Guerra Mundial o transporte ferroviário
entrou em declínio. A concorrência com o transporte
rodoviário e aéreo levou, em vários países
industrializados, à desativação de parte
significativa das linhas ferroviárias, afetando principalmente
as linhas secundárias e locais. Os casos de tombamento de
edifícios do gênero foram, em sua maioria, medidas de
emergência para tentar preservá-los, por estarem
ameaçados de destruição ou de descaracterização.
Em
Valinhos, interior de São Paulo, a prefeitura conseguiu
autorização da Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa) para utilizar o edifício
da antiga estação de trem. Em 1996, obras foram
executadas no prédio. Todas as chapas de cobertura das
plataformas foram substituídas e a estrutura de sustentação,
pilares, vigas e tesouras, pintadas de verde-limão. A
estrutura dos acessos laterais também foi tratada com esta
cor. A edificação principal foi pintada de rosa-salmão.
Outros detalhes ainda, foram pintados de abóbora e azul. "A
composição das cores em nada auxilia a leitura da obra,
muito pelo contrário, prejudica sua função. Não
foi respeitada a intenção plástica original do
autor do projeto, mostrando que obras de restauração
têm que ser feitas por profissionais habilitados", explica Kuhl.
"A maior conscientização em relação
aos problemas do meio-ambiente, à poluição e
suas conseqüências, pode levar a uma recuperação
progressiva das ferrovias. Esse tem sido o caso, nos últimos
anos, por exemplo, do desenvolvimento do transporte por trens de
grande velocidade na Europa", afirma.
A
ferrovia Madeira-Mamoré resiste
Foi
justamente a concorrência com o transporte rodoviário, aliada à alegação de
inviabilidade econômica e à falta de manutenção,
que quase fez desaparecer outro importante exemplo de empreendimento
de engenharia ferroviária no Brasil: a ferrovia
Madeira-Mamoré. Por volta de 1846 a Bolívia, sem
saída para o mar, precisava seguir a rota do rio Amazonas para
chegar até o Oceano Atlântico. Logo no início,
entretanto, encontra-se o longo trecho encachoeirado do rio Madeira,
impedindo a navegação. Surgem então as primeiras
idéias para superar esses obstáculos, uma delas é
a construção de uma ferrovia ao lado do rio. Em 1865, a
Guerra do Paraguai isolou o Mato Grosso do resto do país. O
Brasil, sentindo a necessidade da saída pelo rio Madeira,
une-se à Bolívia no desafio de construir a linha férrea
e D. Pedro I assina um tratado de amizade com aquele país para
livre utilização dos rios fronteiriços. Assim
começa a história da construção da
ferrovia Madeira-Mamoré, que percorreria 366 quilômetros
no estado de Rondônia. Apesar do projeto inicial datar de
meados do século XIX, apenas em 1912 a obra é concluída
e entregue.
A
execução foi permeada por vitórias e fracassos e
pela morte de centenas de empregados. A linha era um canal de
escoamento da produção agropecuária regional,
servia como apoio a diversas pequenas localidades isoladas no meio da
Amazônia. Segundo texto do parecer final em favor do
tombamento, de autoria de José Leme Galvão, além
de ter sido elemento básico da ocupação de
Rondônia a ferrovia integrou-se plenamente aos costumes e
necessidades da região. Ao desbravar a região, alterou
a condição de vida da população, que se
deslocou para aquele distante ponto da Amazônia Ocidental.
Representou, ainda, uma das mais importantes obras de engenharia do
início do século. Seu acervo permite, hoje,
caracterizar a tentativa inédita de ocupação da
Amazônia e também a mais avançada tecnologia da
época, representada pela energia a vapor.
Mas,
a despeito de todo esforço conduzido para concluir a ferrovia
e da importância que adquiriu para a população da
região Norte, com pouco mais de 60 anos de uso a ferrovia foi
desativada por decreto, em 1966. Seus bens foram então
desmembrados como justificativa para a construção de
uma rodovia pelo Ministério da Guerra, durante a ditadura
militar. Pouco mais de dez anos depois, em 1979, o Ministério
dos Transportes publicou um edital que anunciava leilão
público para a venda do acervo da ferrovia como sucata. Essa
decisão gerou uma reação da opinião
pública em Rondônia, contrária ao sucateamento.
Assim, foram iniciados os primeiros movimentos em favor da
preservação e tombamento da ferrovia. O processo foi
concluído em 2005 com o tombamento do pátio ferroviário
da estrada de ferro e dos bens móveis e imóveis. "A
Madeira-Mamoré é um legado que transcende em muito o
patrimônio material que aqui se propõe tombar. Na
verdade, o sentido mais amplo de se proteger do desaparecimento dessa
porção material é que a experiência de
construir uma estrada de ferro, em meio à natureza incongênere
da Amazônia no período que vai da segunda metade do
século XIX às primeiras duas décadas do século
XX, se tornou uma das grandes aventuras do homem sobre a Terra e,
como tal, ela é rica não só para a história
do Brasil, mas dos outros povos envolvidos e da humanidade",
afirma Luiz Phelipe de Carvalho Castro Andrés, conselheiro do
Iphan e relator do processo de tombamento da ferrovia.