A
idéia deste curto artigo é chamar a atenção
para alguns pontos de contato entre o patrimônio industrial e
algumas transformações por que têm passado as
sociedades contemporâneas, inclusive a nossa. O elo de ligação
entre ambos os conjuntos temáticos será a noção
de “trabalho”.
Quando
pensamos imediatamente em patrimônio industrial pensamos logo
em prédios vetustos, máquinas ultrapassadas sem valor
comercial, e relíquias materiais e arquitetônicas,
algumas com valor artístico de época. Um aspecto menos
convencional, mas nem por isso menos evidente, é a
possibilidade de, através desse verdadeiro arquivo a céu
aberto (se não pensarmos aqui nos achados arqueológicos),
estabelecer uma conexão com o tipo de industrialização
de um período histórico e do modo de vida da classe
trabalhadora correspondente a ele. As vilas operárias,
próximas aos prédios das fábricas, ou as
company-towns são demonstrações desse último
interesse, para o investigador. Mas há ainda mais.
Um
aspecto pouco considerado do patrimônio industrial é que
ele é um campo de investigação vivo, e não
passadista ou morto. Isso porque não se limita apenas a um
conjunto de bens arquitetônicos ou sítios cheios de
objetos e partes de objetos interessantes. Uma vez que se detém
sobre máquinas, equipamentos, instalações e
imóveis onde se processou a produção industrial,
o patrimônio industrial é também a recolha e o
tratamento de um patrimônio técnico de uma sociedade e
de uma comunidade, e esse processo está sempre em
transformação. Nesse sentido, o patrimônio
industrial permite a elucidação da transmissão
de um saber técnico. Ele permite estabelecer, hoje, um elo
entre as formas de produzir - o que envolve homens/mulheres e
máquinas - e a cultura. Ora, toda a relação de
trabalho que envolve o executante e o instrumento envolve também
uma reapropriação, por parte do agente, das ferramentas
que tem à sua disposição: diante das máquinas,
os operadores criam, adaptam, inventam modos, rearranjam o espaço,
colocam, por exemplo, um suporte no solo para regular a altura, ou
fazem alguma “gambiarra” para tornar a tarefa mais suportável,
para “ganhar” algum tempo livre diante de um ritmo imposto...
eles podem inclusive interferir no funcionamento do maquinário
- o que é certamente arriscado, chegando a ocasionar
acidentes. O que é de todo modo interessante ressaltar é
o papel ativo do operador humano. Portanto, se pensarmos em uma
história da tecnologia que incorpore não apenas a
máquina ou o equipamento em si mas a sua distância ou
proximidade diante do elemento humano da operação, o
patrimônio industrial tem muito a contribuir. O “mapeamento”,
nesse caso, teria de se ampliar.
Esse
aspecto pouco ou nunca é considerado como também
fazendo parte da aquisição do saber técnico,
pois em geral a concepção convencional tende a fazer
duas distinções bem marcadas: a lª entre o
conteúdo formal (os ensinamentos de ciências,
matemática, química, etc.) e o conteúdo
empírico, obtido na prática ou trazido de um estoque
parental, grupal ou profissional prévio. A 2ª distinção
é aquela que separa o elemento humano (trabalho) do elemento
material (a máquina). Essas distinções são
vistas hoje como bastante limitadoras, mesmo de um ponto de vista
econômico ou da produtividade. Mais e mais as firmas modernas
estão se dando conta do “saber fazer” do operador e
estimulando esse tipo de conhecimento em sua força de
trabalho. Autores hoje falam em um “novo profissionalismo”
emergindo da crise do modo excessivamente racionalizado de trabalho
que concebe o trabalhador como mero executante de tarefas prescritas
ou, para dizer numa palavra, como “apertador de parafusos”. Ora
este aspecto mostra toda a atualidade do patrimônio industrial,
pois esse último pode ajudar a esclarecer os elos entre formas
de produzir e o, digamos, “em torno” do grupo social
historicamente considerado. Cultura e técnica estão,
assim, menos distantes do que se presume. A arqueologia industrial
necessariamente inclui esse aspecto dinâmico da cultura. Agora,
para que o elo seja estabelecido, é preciso que os traços
e as marcas materiais sejam mantidas, preservadas. Essas marcas devem
ser confrontadas com outras fontes, sobretudo o depoimento da
população ou seus descendentes que vivenciaram o
ambiente em que aquelas fábricas funcionaram. Como foi
sugerido, o conhecimento sobre como os homens e as mulheres criam -
mesmo em condições de constrangimento, como é o
caso dos operários e operárias - deve ser de nosso
interesse não só humano, mas também científico.
E não só por razões de preservacionismo mas
também porque eles podem ser úteis para resolver
problemas do presente. Uma das justificativas para a volta da
discussão sobre cooperativas e autogestão, atualmente,
está em que esse movimento traz de volta o ideal típico
de certas correntes do século XIX, baseadas em operários
profissionais, de ofício, para os quais valia a máxima
de que “quem sabe tocar a fábrica são os próprios
operadores”, e não os patrões: se esses últimos
se virem sozinhos com as máquinas, não sai produção
alguma!
Essa
é uma conexão, longínqua, mas não
impossível, entre o que pode ser recuperado da cultura
material das fábricas e o presente. Na medida em que a
produção se torna hoje em dia crescentemente
“imaterial”, uma base para discutir essa provável mudança
de paradigmas passa a ser os próprios achados de uma
civilização industrial que sofre drásticas
transformações. Até que ponto pode um operário
fabril hoje diante de uma máquina ferramenta de controle
numérico, por exemplo, ou um operador diante de um monitor que
estabelece minuciosamente o que ele deve fazer, quando e como, dizer
que efetivamente “controla” o seu próprio trabalho? Talvez
ele possa atuar dentro de certas margens, agir preventivamente,
monitorar o risco de cometer um erro, mas muito dificilmente pode
afirmar que “controla” o seu trabalho. A relação
entre trabalhador e instrumento, essencial para aquele sentimento de
obrar algo, um suporte material que ele vai, justamente, confomar,
isto é, conferir uma forma, ficou presentemente muito diluído.
A relação entre trabalhador e trabalho, mediada que era
pelo instrumento (e depois pela máquina, que nada mais é
do que um desenvolvimento daquele), está se tornando mais e
mais imediata. Isso faz com que assistamos, em um intervalo muito
curto de tempo, a uma obsolescência dos meios de produção
correspondente à velocidade da substituição de
equipamentos puramente mecânicos por outros, que começam
a incorporar uma base microeletrônica em seus processos de
transmissão. Na verdade, o dinamismo da produção
capitalista sempre foi frenético e sempre promoveu mudanças
nos instrumentos de trabalho (precisão, tamanho, peso,
material, segurança, etc.) que afetaram a disposição
da força de trabalho em contato com eles. Agora estamos
assistindo talvez a uma nova família de instrumentos que aliam
o princípio da automatização e o da
retroalimentação de operações. Ora, daí
decorre uma modificação no espaço físico
da fábrica (exigências estritas de limpeza e assepsia,
luminosidade, fluxo de transmissão aéreo do produto
semi-acabado, levando à necessidade de galpões muito
mais altos...), e também na relação do
trabalhador com o produto ou o seu instrumento, que muitas vezes
“desaparece”, devido quer à sua absorção em
outra máquina, quer à simples desnecessidade daquela
operação diante da racionalização do
processo produtivo. Nesse sentido, acompanhar as mudanças na
linhagem do maquinário fabril (e do seu ambiente físico
construído) é acompanhar uma história da técnica
que a insere dentro de uma determinada cultura material.
Cultura
material essa que pode ser - e freqüentemente o é -
desprezada pelos próprios agentes que contribuem ou
contribuíram para que ela tivesse vigência. Às
vezes por interesses econômicos evidentes; às vezes por
um misto de ressentimento e orgulho entre os que sofreram em um
posição subordinada o peso daquela cultura. Para o
primeiro caso, basta recordar os argumentos que são esgrimidos
pelos donos das empresas que querem vendê-las, desfazendo-se de
seu patrimônio e para isso depreciando material e
simbolicamente tudo o que se relaciona a ela: “para que você
se interessa por esse monte de coisa velha: não há nada
de interessante lá dentro para se ver” - é um
discurso que pode muito bem estar na boca do incorporador do terreno
que adquiriu a antiga fábrica. No segundo, mais complicado,
trata-se dos operários das empresas ou fábricas que
desaparecem: sentimentos contraditórios de raiva (pela
exploração a que foram submetidos) e regozijo (pela
supressão do objeto que causou aquele estado de espírito),
ou de melancolia e apreço (pela usura biográfica que
está associada ao tempo passado ali) são detectados.
Nesse casos, só uma pesquisa mais aprofundada pode deslindar o
efeito da cultura material para além do seu raio
físico-construtivo. Os vizinhos imediatamente contíguos
a uma tradicional fábrica de papel do bairro da Lapa, zona
oeste da cidade de São Paulo, nutrem um sentimento de desgosto
pela edificação, pois a ela estão associados
barulho e poluição; já outros, moradores do
mesmo bairro, porém mais longínquos na moradia,
manifestaram seu apoio em um abaixo-assinado de mais de mil e
duzentas assinaturas pela preservação do mesmo
edifício. Como se vê, o aspecto comunitário,
conforme se discutirá mais à frente, é outro
componente a se levar em conta na apreciação do
patrimônio industrial.
Mas,
além dessas conexões algo longínquas, há
outras, bem mais próximas. Uma delas é a possibilidade
de se estabelecer, por meio de objetos encontrados em sítios
industriais, uma periodização mais precisa da
industrialização: por exemplo, que materiais eram
utilizados tanto nas máquinas quanto nos produtos
manufaturados? Essas evidências podem ajudar a construir
hipóteses históricas: o esgotamento de certas fontes de
matérias-primas, ou então o desenvolvimento de nova
força motriz ou princípio propulsor podem explicar a
obsolescência de certos processos de produção, o
deslocamento de fábricas e mesmo crises sociais locais.
Estudos comparativos baseados no patrimônio industrial estão
a mostrar, por exemplo, que a visão acadêmica que
estamos acostumados a reproduzir nas escolas sobre a industrialização
- largamente dependente do exemplo britânico - pode na verdade
ser um grande clichê. Ao invés de basear-se na força
motriz do vapor e em grandes concentrações fabris, como
foi o caso inglês, outros países (como a França e
Portugal) passaram pelo mesmo processo à base, porém,
de energia hidráulica e de uma industrialização
difusa e descentralizada. Uma história da industrialização
não se faz apenas com arquivos de ficha de empregados, atas de
reunião da empresa, relatórios da diretoria, mas também
com o maquinário, as instalações, as espécies
de produtos manufaturados - até a indumentária dos
empregados. Portanto, essa deveria ser uma preocupação,
em primeiro lugar, dos agentes da industrialização,
isto é, os empresários, uma vez que tomaram parte
direta na ativação desse processo social.
Uma
coisa é certa: preservar deveria ser uma tarefa urgente dos
profissionais de patrimônio industrial, estudiosos e
acadêmicos. Por um motivo muito simples: a destruição
do bem imóvel é irreversível. Não se pode
estudar, nos detalhes que aqui foram expostos, um objeto que
literalmente desapareceu ou virou pó. Apenas os arqueólogos
passam a ter esse privilégio, trabalhando sobre um fragmento
que, no entanto, estava há pouco muito próximo de sua
inteireza. Mesmo assim, o faseamento cronológico necessário
para o trabalho do arqueólogo industrial leva tempo e é
preciso, mais uma vez, que os sítios estejam lá,
disponíveis. Somente uma consciência cultural das
pessoas responsáveis pela política urbana de ocupação
do solo pode evitar o imediatismo que informa o planejamento das
cidades.
Por
fim, gostaria de abordar um último aspecto, estreitamente
ligado com o que foi dito logo acima: o papel dos interesses
comunitários. Muitas vezes, mesmo sem ser um agente direto do
patrimônio em causa (nem operários, nem empregados, nem
patrões), interesses práticos ligados à inserção
do bem em um bairro ou cidade passam a ter relevância para a
avaliação do seu significado histórico. Para
isso é necessário que a população local
encare as instalações fabris como parte de sua memória
coletiva. As chamadas “vilas operárias” são um caso
relativamente mais simples de se identificar, pois as casas têm
como destinação precípua os próprios
trabalhadores da fábrica. No caso de fábricas
incrustadas em bairros, mesmo bairros operários, à
medida que as transformações urbanas vão
erodindo as identidades originais, os moradores que ficam tendem a
perder seus laços com as características sociais que
marcavam aquele espaço. Esse é um lado difícil
de “apresentar” como um argumento digno de ser levado em conta
nos debates sobre patrimônio industrial porque esbarra em
conflitos de interesses, conflitos que às vezes convivem
dentro de uma mesma pessoa ou família - refiro-me ao conflito
entre proprietários de imóveis e a consciência
preservacionista como patrimônio identitário. É
preciso ter em conta esse problema. Se se quer uma ação
efetiva nessa área, é preciso que os poderes públicos
assumam um papel pró-ativo, imbuídos de consciência
cultural e história, e não usem aquela contradição
real como álibi para uma postura resignada diante das
dificuldades ou, o que é pior, a omissão.
Leonardo
Mello e Silva é professor do Departamento de Sociologia da
FFLCH/USP email: leomello @ usp.br