O
interesse pelo patrimônio industrial brasileiro, crescente nos
últimos anos, trouxe à tona uma questão cuja
discussão que me parece de importância decisiva não
apenas para o futuro das pesquisas relacionadas a esta questão,
como para o próprio futuro
desse patrimônio.
São
várias as disciplinas que têm voltado seu instrumental
teórico e metodológico para a compreensão do
processo de industrialização do Brasil. Filósofos,
economistas, sociólogos e historiadores, entre outros, têm
se ocupado em analisar o sistema fabril, dentro do processo
desencadeado pela chamada Revolução Industrial, a
partir de perspectivas econômicas, sociais, políticas e
ideológicas. Desde Marx e Engels e depois com Lequín
(1982), Thompson (1987) e Hobsbawn (1987), entre outros, inúmeras
análises foram feitas sobre os processos e mecanismos
de dominação e resistência na nova ordem, tomando
a fábrica como locus privilegiado para esses estudos.
Na
arqueologia, o estudo das fábricas, moinhos, máquinas a
vapor, estradas de ferro etc, desenvolvido sob o cunho de arqueologia
industrial, surgiu na Inglaterra, na década de 1950,
quando Donald Dudley, um latinista da Universidade de Birmingham,
começou a organizar visitas dos seus estudantes a antigas
instalações industriais na região, prática
que foi seguida por amadores preocupados com a preservação
dos antigos vestígios da industrialização e que
acabou por abrir um novo campo de investigação centrado
no conhecimento dos aspectos materiais da Revolução
Industrial (Clark, op. cit.).
De
lá para cá, inúmeros trabalhos têm sido
realizados especialmente na França, Bélgica, Suécia,
Dinamarca, Estados Unidos e na própria Inglaterra, entre
outros países, ainda que os problemas colocados, obviamente,
não tenham permanecido os mesmos (Meneses, 1983).No
princípio, muitos ataques foram dirigidos a esse campo de
conhecimento, negando-lhe o caráter arqueológico,
especialmente em função da pouca profundidade temporal
por ele abarcada – “a arqueologia iniciou como uma disciplina
tradicionalmente associada a vestígios antigos” [1]
(Foley, 1968:66) – e da metodologia empregada nas pesquisas, muitas
vezes sem a utilização de escavações.
Além disso, em função dos seus objetivos
principais – a preservação dos sítios -, os
primeiros arqueólogos industriais, foram acusados de
diletantismo e amadorismo (Idem,:67).
Arqueologia
industrial é, na Europa, um tema particular da arqueologia,
enquanto que no resto do mundo, mais especificamente nas antigas
colônias européias, a arqueologia dos últimos
séculos passados é definida como arqueologia histórica,
na qual a arqueologia industrial não seria mais que um
sub-tema (Clarke, 1999:239).Mais
recentemente, esse ramo que se tem designado, de maneira ampla, de
arqueologia industrial, tem se preocupado em reconstituir, a partir
de elementos concretos, o espaço material e humano que envolve
uma sociedade (Pinard, 1985). A arqueologia industrial, desta forma,
não visa realizar uma história da ciência ou das
técnicas, mas
“(...) encontrar as circunstâncias
materiais e técnicas que estão na origem de uma
fabricação, da montagem de uma máquina ou da
construção de um estabelecimento ou de um equipamento
que marcou a vida de seus contemporâneos, e em seguida
pesquisar as conseqüências que esses ‘acontecimentos’
tiveram sobre todos os dados do ambiente de uma população
ou de um grupo social” (Idem:6).
Indo
além da conceituação de Pinard, penso que a
arqueologia industrial deve ser entendida como o estudo das mudanças
sociais, econômicas e culturais decorrentes do crescimento da
organização capitalista na indústria, a
partir da interpretação das suas evidências
materiais. Isto significa, por um lado, colocar o tema no âmbito
da expansão do capitalismo ocidental e, por outro, abordá-lo
para além da indústria propriamente dita, entendida no
sentido de unidade produtiva.
Trata-se,
em primeiro lugar, de dirigir o foco das investigações
"ao fenômeno planetário do capitalismo
hegemônico, um dos mais impactantes em toda a trajetória
da humanidade" (Andrade Lima, 1999:231), ao qual a
industrialização está necessária e
visceralmente ligada.
Em
segundo lugar é crucial considerar a fábrica moderna,
aquela cuja produção é realizada em
estabelecimentos equipados com maquinaria relativamente complexa,
onde se empregou inicialmente o vapor ou a energia hidráulica
e que produziu bens materiais destinados à troca e ao lucro,
com base na divisão do trabalho e com mão-de-obra
assalariada. Uma organização que não pode ser
confundida, portanto, com unidades produtivas artesanais, tais como
engenhos coloniais, por exemplo, ainda que se deva ter presente que
se tratam de lentas e progressivas transformações.Por
fim, o mais importante de tudo: é preciso compreender que esta
organização capitalista da indústria,
ocorrida no bojo do avanço do sistema capitalista mundial, foi
responsável por uma feroz e intensa reordenação
da sociedade que atingiu os mais diferentes níveis:
“Profundas
alterações foram e continuam sendo introduzidas nas
relações inter-pessoais, nas relações
sociais, nas relações com a natureza, na estrutura da
família, na organização do trabalho, aí
incluindo o doméstico, remodelando a maneira como pensamos
acerca de nós mesmos, a maneira como criamos laços e
construímos nossas ligações com os
outros.”(Andrade Lima, 2002:121)
Não
se pode, portanto, pretender restringir as pesquisas dessa
“especialização” da arqueologia às unidades
fabris, à sua estrutura e
aos artefatos diretamente ligados a ela, tais como maquinário
ou produtos. Ainda que tais estudos possam ser importantes e
proveitosos, é preciso não perder de vista outras
marcas, materializadas em diferentes suportes, deixadas pela expansão
de uma economia e de uma sociedade industriais. Essa diversificada
cultura material carrega em si a narrativa de diferentes facetas de
um mesmo drama: estratégias de sobrevivência, de
dominação ou resistência; relações
de trabalho, de gênero ou étnicas; divisões
econômicas, religiosas ou espaciais, e tantas outras questões.
Como
se vê, o termo arqueologia industrial pode ser pequeno
para abarcar tantos temas, mas, sobretudo reduz a possibilidade de
compreensão de um fenômeno que se materializou em parte
na indústria e seus produtos, mas também em numerosos
outros domínios da cultura
material.
Os
rótulos não me agradam. Sempre me pareceu, como foi
afirmado por Ulpiano Bezerra de Meneses (op.cit.,:223), que eles
representam uma “compartimentalização que
corresponde mais a critérios acadêmicos e tendências
corporativas na organização da pesquisa científica
(...) do que a algum fundamento epistemológico”. Mas se
precisamos lançar mão deles, sobretudo para poder
situar e explicitar um ponto de vista teórico e, a partir
disto, lançar mão de conceitos e metodologias
pertinentes e operacionais em relação a uma
problemática específica, então prefiro designar
esse campo como arqueologia da industrialização.Beatriz Valladão
Thiesen é coordenadora do Laboratório de Ensino e
Pesquisa em Antropologia e Arqueologia e professora do Departamento
de Biblioteconomia e História da Fundação
Universidade Federal do Rio Grande.
Notas
[1]
Os textos, originalmente em língua estrangeira, foram
traduzidos quando citados neste trabalho. A responsabilidade desta
tradução é minha.
[2]
É bem recente, no Brasil, a noção de que o campo
do arqueólogo não está apenas no subsolo. Faz
pouco tempo que abandonamos a noção de escavação
como uma espécie de questão-de-honra nas metodologias
da arqueologia e passamos a dar mais atenção à
cultura material que está sobre o solo e não apenas no
subsolo (além das louças, vidros e ossos enterrados),
ainda que existam focos conservadores nos meios acadêmicos que
confundem uma técnica com o objeto de estudo da arqueologia :
“Para muitos não há arqueologia sem escavação
e conseqüentemente não existem arqueólogos sem uma
colher de pedreiro nas mãos”.(Sousa 1998:11-12).
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PALMER, Marilyn
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