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Carolina Maria de Jesus
Uma mulher negra, mãe solteira de três filhos, migrante, catadora de papel que, há quarenta e cinco anos, quando ainda vivia numa das primeiras favelas da cidade de São Paulo, viu a edição de trinta mil exemplares de seu primeiro livro esgotar em três dias. Essa é a história da escritora Carolina Maria de Jesus
Carolina Cantarino
Arquivo pessoal de Audálio Dantas
O jornalista Audálio Dantas foi quem “descobriu” Carolina de Jesus ao escrever uma matéria sobre a expansão da favela do Canindé que, em meados dos anos 1960, foi desocupada para que fosse construída a Marginal Tietê. Ao conversar com os moradores, o jornalista conheceu a escritora que lhe mostrou, em seu barraco, uma coleção de cerca de 20 cadernos, recolhidos do lixo, nos quais ela registrava o seu cotidiano.

Dantas convenceu a editora Francisco Alves a publicar os diários de Carolina de Jesus sob o título Quarto de despejo, referência ao modo como a escritora percebia a favela em oposição à cidade: “Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludo, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”.

Quarto de despejo tornou-se um sucesso editorial, sendo traduzido em treze línguas e mais de quarenta países, vendendo cerca de um milhão de cópias em todo o mundo. Os registros diários de Carolina de Jesus iniciaram-se em 15 de julho de 1955, sendo interrompidos em 28 de julho do mesmo ano e retomados apenas em 2 de maio de 1958. O livro se encerra com um registro feito no dia 1.o. de janeiro de 1960. Mas nem o formato de diário nem a descontinuidade cronológica prejudicam a estrutura narrativa.

Mesmo com dificuldades, a escritora ainda publicou, no Brasil, os livros Casa de alvenaria (1961), Provérbios (1963) e Pedaços da fome (1963) e >i>Diário de Bitita (publicação póstuma, 1982). O historiador José Carlos Sebe Bom Meihy, durante a sua pesquisa para o livro Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus (escrito em parceria com o historiador norte-americano Robert Levine), localizou, junto à família da escritora, uma caixa com trinta e sete cadernos que trazem poemas, contos, quatro romances e três peças de teatro. Para o historiador, esse acervo revela que os diários que fizeram Carolina Maria de Jesus ficar famosa no mundo inteiro, não representam nem de leve a essência da obra da escritora: “estamos em face de um caso único na história da cultura popular nacional, onde, na favela, uma autora semi-analfabetizada produziu uma obra que, segundo o impulso inicialmente dado, seria uma promessa de renovação de nossos critérios de definição cultural”, afirma Bom Meihy ao lamentar o esquecimento de uma escritora com uma importância singular na história brasileira.

Bitita

Eu estava com sete anos e acompanhava a minha mãe por todos os lados. Eu tinha um medo de ficar sozinha. Como se estivesse alguma coisa escondida neste mundo para assustar-me. Eu ainda mamava. Quando senti vontade de mamar comecei a chorar.

"Eu quero irme embora!

Eu quero mamar!

Eu quero irme embora!"

A minha saudosa professora D.Lanita Salvina perguntou-me: "Então a senhora ainda mama?"

"Eu gosto de mamar"

As alunas sorriram.

"Então a senhora não tem vergonha de mamar?"

"Não tenho!"

"A senhorita está ficando mocinha e tem que aprender a ler e escrever, e não vai ter tempo disponível para mamar, porque necessita preparar as lições. Eu gosto de ser obedecida! Estais ouvindo-me D. Carolina Maria de Jesus?"

Fiquei furiosa e respondi com insolência.

"O meu nome é Bitita. Não quero que troque o meu nome."

"O teu nome é Carolina Maria de Jesus."

Era a primeira vez que eu ouvia pronunciar o meu nome.

Que tristeza que senti. Eu não quero este nome, vou trocá-lo por outro.

A professora deu-me umas reguadas nas pernas, parei de chorar. Quando cheguei na minha casa tive nojo de mamar na minha mãe. Compreendi que eu ainda mamava porque era ignorante, ingênua e a escola esclareceu-me um pouco.

Minha mãe sorria dizendo:

"Graças a Deus! Eu lutei para desmamar esta cadela e não consegui. A minha mãe foi beneficiada no meu primeiro dia de aula. Minha tia Oluandimira dizia:

"É porque você é boba e deixa esta negrinha te dominar."

(apud: BOM MEIHY, J.C. Sebe & LEVINE, Robert M. Cinderela negra. A saga de Carolina Maria de Jesus. Editora da UFRJ, 1994, p.173-174)

Para saber mais:

Carlos Vogt, “Trabalho, pobreza e trabalho intelectual”, ComCiência, Edição Violência - Faces e Máscaras, n.o. 26, novembro de 2001. - http://www.comciencia.br/reportagens/violencia/vio12.htm

José Carlos Sebe Bom Meihy, “Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio”, Revista USP, São Paulo, n.o. 37, 1998.

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